quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Teoria do Conhecimento

PERSPECTIVA STANDARD - Feldman
Introdução
Antes de iniciar o relatório propriamente dito acerca do primeiro bloco, é importante tecer alguns comentários sobre Epistemologia, ou Teoria do Conhecimento. Esta pode ser definida como a investigação acerca do conhecimento verdadeiro. Pode-se acrescentar que é uma reflexão filosófica com o objetivo de investigar as origens, as possibilidades, os fundamentos e a extensão e valor do conhecimento. Por estas razões, pode ser considerada como uma disciplina de importância fundamental para a filosofia.
Para haver conhecimento, é necessário que haja uma relação entre dois elementos básicos: por um lado, um sujeito conhecedor e por outro lado um objeto conhecido. Somente haverá conhecimento se o sujeito conseguir apreender o objeto, ou seja, representá-lo mentalmente. Podemos concluir, então, que o conhecimento faz parte de uma argumentação filosófica na construção do saber.
Sabe-se que a Teoria do Conhecimento trata de problemas tais como “o que é o conhecimento?”, “o que podemos conhecer?”, “qual é a origem do conhecimento?”, “como justificamos as nossas crenças?”. Todas estas indagações envolvem uma porção de conceitos relacionados entre si, quais sejam “conhecer”, “perceber”, “prova”, “crença”, “justificação”, entre outras. A palavra Conhecimento deriva do grego epistemê, que significa conhecimento, contrapondo-se com o termo doxa, que se traduz por opinião. Já aqui, deparamo-nos com um primeiro grande problema, ou seja, como se alcança o conhecimento, e ao mesmo tempo se evita uma simples opinião. Platão, em sua Teoria das Idéias, estabelecia que somente fora da esfera das impressões sensíveis é que somos levados ao entendimento das idéias perfeitas. Dito de outra forma, os objetos apreendidos pelos nossos sentidos são meras cópias imperfeitas (arquétipos), e que somente no plano das idéias é que reside a verdade, ou seja, pelo conhecimento sensível não podemos considerar que haja conhecimento. É justamente na alegoria da caverna que Platão deixa evidente sua teoria. Depois, seu discípulo Aristóteles vai contrapor-se à teoria das idéias do mestre, de quem se desvincula posteriormente, para partir para o desenvolvimento de sua própria teoria, teoria esta que ao invés do mundo das idéias privilegia o concreto.
A discussão acima acabou por dar origem a duas correntes epistemológicas antagônicas. De um lado, os empiristas ingleses (Locke, Hume e Berkeley), defendendo que o conhecimento origina-se da experiência sensível. Do outro lado, os racionalistas Descartes e Leibiniz, contrapondo-se aos empiristas, considerando que o conhecimento deve mostrar um caráter universal, necessário, e que não dependem da experiência. Kant surge neste campo de batalha, procurando determinar com exatidão como se constrói o conhecimento, concluindo que este depende tanto do que é apreendido pelos sentidos, como também das formas a priori do pensamento. Desta forma, Kant se opõe tanto ao empirismo como ao racionalismo.
CAPÍTULO I
Neste primeiro capítulo, o autor faz algumas alegações centrais da Perspectiva Standard, enfatizando o objetivo central do livro, que é levar ao público leitor uma compreensão mais racional do que mostra o senso comum sobre o Conhecimento.
Definindo Perspectiva Standard: trata-se de um conjunto de idéias comuns que nos permitem estabelecer um ponto de partida para um objetivo maior, que é a procura do conhecimento em si. O autor começa indagando o que nós conhecemos. Fornece uma lista contendo categorias e exemplos que nos dão uma idéia das coisas que podemos conhecer. Obviamente, trata-se de uma lista pequena, sujeita a alterações e/ou inclusões, e representa uma base para se começar uma investigação acerca do que seja conhecimento. De uma forma ou de outra, o autor diz que nós conhecemos uma grande variedade de coisas, as quais estão enquadradas nas categorias por ele expostas.
O ponto seguinte da discussão refere-se às fontes de conhecimento, começando pela memória. Outro tipo de fonte é o testemunho das pessoas. Três outras fontes o autor destaca: a visão (vale lembrar aqui que é a visão, para Aristóteles, o sentido que melhores condições oferece para a aquisição de conhecimento), a audição e os outros sentidos. Fala também da introspecção como fonte potencial de conhecimento, ou seja, mediante a reflexão pode-se chegar a níveis elevados de crescimento moral, intelectual e, conseqüentemente, de conhecimento. Era este o método adotado pelos antigos filósofos. Sócrates pode ser um exemplo maior.
Das fontes citadas, podemos inferir que em muitos casos nosso conhecimento surge de combinações entre elas, ou seja, a Perspectiva Standard sustenta que nós podemos adquirir conhecimento a partir dessas fontes, mesmo que de forma imperfeita.
A seguir, o autor vai discorrer sobre o desenvolvimento da Perspectiva Standard, começando com uma nova indagação: sob que condições uma pessoa sabe que alguma coisa é verdadeira? Ele mesmo responde, afirmando ser extremamente difícil se ter uma certeza absoluta, o que envolveria outras questões mais complexas, argumentando que de acordo com muitos filósofos, uma condição importante para se atingir o conhecimento seria uma crença racional justificada, ou seja, que houvesse uma aceitação universal, o que leva a uma questão subseqüente: sob que condições uma crença é justificada? Entretanto, as respostas a esta indagação, propõe o autor trabalhar mais adiante no texto. Da mesma forma, à questão: de que maneiras as questões epistemológicas afetam umas às outras, Feldman transfere para os capítulos finais do livro.
A partir deste ponto, o autor passa a tratar dos desafios à Perspectiva Standard. Começa por colocar como os principais desafios à perspectiva três correntes de pensamento, quais sejam: a) a perspectiva cética; b) a perspectiva naturalista; c) a perspectiva relativista. A perspectiva cética, defendida pela escola filosófica tradicional, é posta como um poderoso desafio. É uma corrente surgida após o platonismo, tendo dominado até a decadência do helenismo e o posterior crescimento do cristianismo. Em face de seu caráter tendente a um inevitável radicalismo, não se nos afigura como uma perspectiva aceitável, entretanto tem seu valor na medida em que busca o conhecimento mais razoável. A perspectiva cética nega total ou parcialmente a possibilidade de conhecimento. De acordo com o cético, encontramos sempre boas razões para duvidar mesmo de nossas crenças mais fortes. O cético, no tocante ao conhecimento sustenta que não podemos obter conhecimento. Afirma que não temos direito às nossas crenças, que nenhuma delas é bastante boa que possa ser justificada. Sexto Empírico e Michel de Montaigne foram os dois mais destacados defensores do ceticismo. Na Perspectiva naturalista, o teórico dessa corrente vai buscar ou se valer de argumentações científicas e não hipotéticas. O naturalista defende que a perspectiva Standard diz que podemos conhecer mais do que efetivamente conhecemos, ainda que em menor proporção do que a perspectiva cética nos faculta. Por fim, a perspectiva relativista, pelo seu caráter flexível, mostra-se como a mais aceitável, mais tolerante e, conseqüentemente, mais razoável. Os argumentos dos naturalistas podem ser utilizados pelos céticos, embora de forma diferenciada, própria, posto que para os teóricos dessa corrente duas afirmações podem ser igualmente razoáveis, mesmo que sejam antagônicos, divergentes. Em outras palavras, o autor coloca que a perspectiva relativista reduz a validade com contextos relativos.
CAPÍTULO II
Aqui, Feldman passa a fazer uma análise tradicional do conhecimento, começando por mostrar alguns tipos de conhecimento, ou seja, conhecer um indivíduo, saber quem ele é, saber se, saber quando, saber como, etc. Neste tópico da discussão, o autor conclui que todas as tentativas de explicar o conhecimento proposicional não se sustentam, argumentando que a conclusão mais razoável é a de que há pelo menos três tipos básicos de conhecimento: o conhecimento proposicional, o conhecimento por intimidade ou familiar e o conhecimento por habilidade. No caso do conhecimento por familiaridade, este seria adquirido pela prática, pelo esforço repetitivo, pelo exercício constante; no conhecimento por habilidade podemos citar o caso do músico que toca um instrumento “de ouvido”, aquele que não sabe sequer o que é uma clave de sol; no conhecimento proposicional, podemos imaginar a seguinte situação: uma pessoa que conhecemos. Podemos saber alguma coisa dela, mas não significa que sabemos tudo a respeito dessa pessoa. Em suma: se não existe o conhecimento total, e se ninguém conhece ninguém inteiramente, a que podemos reduzir especificamente o conhecimento em si? Partindo de tais premissas, sugere-se que todo conhecimento é parcial.
À medida que a discussão vai se aprofundando, notamos que o autor vai tornando cada vez mais o leitor consciente de sua conduta acerca de como proceder diante de informações para bem melhor utilizá-las na vida cotidiana. Neste ponto da leitura, Feldman coloca duas condições para que haja conhecimento. A primeira é a verdade, ou seja, todo conhecimento pressupõe a verdade; a segunda condição é a crença, ou seja, se você conhece alguma coisa, tem que acreditar nela ou aceitá-la. Entretanto, as coisas não são tão fáceis como podem parecer. Dito de outra forma, para que alguma coisa seja conhecimento, tem que ser crença sim, porém ainda não é condição suficiente. O autor cita alguns exemplos como predições corretas, o caso do planejador de piqueniques pessimista etc, mas ainda assim não são bases sólidas, boas, fortes. Para que haja conhecimento, além da crença e da verdade, faz-se necessária a sua justificação. Seriam, então, três as condições para que alguma coisa viesse a ser conhecimento: a crença, a verdade e a justificação.
Como vimos, a epistemologia concentra-se no problema da justificação, que se dá graus, da mesma forma que o nosso estatuto epistêmico, no caso o conhecimento, objeto do interesse natural por parte dos filósofos. Vimos, também, que as tentativas tradicionais de definir o conhecimento concentram-se, antes de tudo, em ver o conhecimento como uma fonte mais inteligente de crença, e a forma mais conhecida desta perspectiva é a definição tripartite, segundo a qual o conhecimento pressupõe crença simultaneamente justificada e verdadeira.
Podemos ilustrar a finalização deste bloco, com a definição do conhecimento a partir do Teeteto, o qual começa com a indagação: “O que é o conhecimento?”. Sócrates intermedeia o diálogo com vistas a permitir que o jovem matemático ofereça uma resposta. A primeira sugestão é a de que o conhecimento consiste em coisas como a geometria e a carpintaria, não sendo aceita pelo fato de que para que tal ocorresse, teria ele que definir geometria e carpintaria. A segunda proposta de Teeteto é a de que o conhecimento nasce da percepção, refutada por Sócrates, segundo o qual as sensações são diferentes de pessoa para pessoa, e apenas o que é verdadeiro pode ser conhecido. Ao fim da discussão, Teeteto modifica sua definição, tentando demonstrar que o conhecimento seja um juízo ou crença verdadeira e articulada. Neste ponto, Sócrates explora três formas distintas segundo as quais se poderia dizer que uma crença poderia ser articulada, ou justificada. A mais evidente é quando alguém tem uma crença, e que é capaz de exprimir por meio de palavras; a segunda maneira: ter uma crença justificada acerca de um objeto é ser capaz de mostrar uma análise dele. E por fim, uma pessoa tem uma crença justificada sobre um objeto se for capaz de produzir uma descrição, que só se aplique a esse objeto.
Por fim, Sócrates conclui que a terceira definição que Teeteto chega sobre o conhecimento não é melhor do que as duas primeiras. Obviamente, a discussão não se dá de forma tão simplificada como a acima exposta, mas serve para nos conscientizar de que todos os caminhos que possam levar ao conhecimento não são fáceis de ser trilhados.O diálogo termina sem uma resposta definitiva, todavia deixa a certeza de que avançou bastante na questão. A explicação que fornece acerca de percepção sensorial, modificada depois por Aristóteles, prevaleceria como paradigma até o fim da Idade Média.

BLOCO II
A ANÁLISE TRADICIONAL DO CONHECIMENTO
“E assim, quando as opiniões certas são amarradas, transformam-se em conhecimento, em ciência, e, como ciência, permanecem estáveis”.
(Sócrates, em Mênon-Banquete-Fedro)
Dando prosseguimento ao relatório sobre a Perspectiva Standard, o autor vai tratar da Análise Tradicional do Conhecimento (ATC), procurando buscar uma primeira definição mais antiga e tradicional possível. É no diálogo Menon, de Platão, em que Feldman busca essa inspiração, mais precisamente no trecho “...quando as opiniões certas são amarradas, transformam-se em conhecimento, em ciência, e, como ciência, permanecem estáveis”. Notar que o termo utilizado é estável, e não definitivo. É, obviamente, um conceito básico, mas que já traz em sua gênese a semente da idéia de conhecimento, que haveria de perdurar por séculos. Platão foi um dos primeiros filósofos a distinguir a mera crença do conhecimento. O Teeteto é um dos seus diálogos mais importantes. Apesar de Platão não ter proposto uma definição de conhecimento, é neste diálogo que se encontra aquilo que passou a ser conhecido como definição tradicional do conhecimento. Mesmo filósofos contemporâneos, como Roderick Crisholm, propuseram que “uma pessoa conhece uma proposição apenas no caso de acreditar nela” e de ser tal proposição evidente, termo este que nos remete à primeira regra de Descartes no Discurso do Método, para a base de seu edifício filosófico.
Neste ponto, o ator começa a expor um exame mais detalhado sobre os três elementos da ATC, quais sejam a crença, a verdade e a justificação. Com relação à crença, Feldmann defende que “crer em alguma coisa é aceitá-la como verdadeira”, sendo que mesmo assim, cada um de nós pode acreditar, deixar de acreditar ou mesmo não ter opinião sobre determinada crença. Quando descremos, estamos sujeitos a uma variedade correspondente de atitudes contrárias em relação ao enunciado em que se crer. Ou, para usar a expressão do autor: “a descrença inclui uma variedade correspondente de atitudes negativas em relação a uma proposição”. Já suspender um juízo sobre uma proposição é não crer nem descrer dela.
Aqui é colocado que existe uma maneira alternativa de se colocar as três questões enumeradas. Seria o caso de se admitir que as crenças seriam sentidas, digamos assim, em uma escala crescente de força. Assim, para cada circunstância haveria um grau de crença. Por exemplo, se cremos em alguma coisa com toda convicção possível, temos ao o mais elevado grau de crença possível; se cremos o mínimo possível em algo, temos o menor grau de crença, e, se ficamos num ponto intermediário, é o caso de suspensão de juízo, ou seja, nem cremos nem descremos. Conclui o autor: “a crença é fundamentalmente uma atitude que se toma em relação a proposições”. Por exemplo, seu eu digo que a água do mar é salgada, é porque realmente acredito nisso. A menos que, em esteja mentindo ou querendo enganar a mim mesmo.
Então, a primeira coisa que vimos é que o conhecimento é uma relação entre o sujeito do conhecimento, ou seja, aquele que conhece, e o objeto do conhecimento, que é o que é conhecido. Uma crença é também uma relação entre o sujeito que tem a crença e o objeto dessa crença. É bom que lembremos que por crença os filósofos não querem dizer unicamente a fé religiosa, mas sim qualquer tipo de convicção que uma pessoa possa ter. Vamos tentar fechar o segmento crença com a seguinte exposição: muitos filósofos defendem que todo conhecimento implica em uma crença. Dito de outra forma, quando sabemos alguma coisa, acreditamos nesse algo. Para entendermos melhor em que sentido a crença faz parte do conhecimento, imaginemos as duas frases: a) Eu sei que a Lua é o satélite natural da terra, mas não acredito nisso; b) Não acredito em lobisomens, mas eu sei que eles existem. Vemos claramente que as duas sentenças parecem contraditórias. É impossível saber algo sem acreditar no que se sabe. Assim, diz-se que a crença é uma condição necessária para o conhecimento: sem crença não pode haver conhecimento.
Portanto, a crença é uma condição necessária para o conhecimento, entretanto, não é uma condição suficiente para o conhecimento. E como a crença é uma condição necessária, mas não suficiente para o conhecimento, a crença e o conhecimento não são a mesma coisa. Logo, saber e acreditar são coisas diferentes. Por exemplo, se Pedro souber que a neve é branca, então ele acredita que a neve é branca. Mas será a crença uma condição suficiente para o conhecimento? Obviamente que não, pois as pessoas podem acreditar em coisas que não podem saber, principalmente inverdades. Assim, se a crença é uma condição necessária, mas não suficiente para o conhecimento, teremos que procurar outras condições necessárias que, em seu conjunto reúnam as condições suficientes para que alguma coisa seja considerada conhecimento.
O ponto seguinte da abordagem da ATC é a verdade. Mas, o que é de fato a verdade? Para o autor, a resposta simples e aceita advém da teoria da correspondência de verdade, segundo a qual “uma proposição é verdadeira se e somente se ela corresponde aos fatos”. Em contrapartida, uma proposição será falsa se ela fracassa e não corresponde aos fatos. Esta é, assim, a chamada Teoria da Correspondência (TC). Não podemos esquecer que há uma separação conceptual entre o que seja proposição e enunciado. Uma é diferente da outra. Por exemplo. Quando digo que o céu é azul, estou diante de uma proposição, mas se falo que o céu é azul porque existe uma série de fatores físicos e climáticos que fazem com que meus olhos vejam o espaço infinito em azul, estou fazendo um enunciado. Proposição, portanto, é o pensamento literalmente expresso por uma frase declarativa. Por exemplo, diferentes frases ou afirmações podem exprimir a mesma proposição: “Lisboa é uma cidade” e “Lisbon is a city”. Por outro lado, um enunciado vem a ser um termo utilizado corretamente com o significado de frase, ou mais especificamente, de frase declarativa com sentido, mas que na lógica e na filosofia significa antes aquilo que é expresso por intermédio de uma frase declarativa com sentido. Em resumo: uma proposição pode ser falsa ou verdadeira, mas tem que ter uma construção lógica. Um enunciado também, mas tem que ter valor de verdade. Feldmann nos diz que “toda proposição tem que ser necessariamente exata, ainda que a sentença não o seja”. O que se diz é uma sentença; o que se quer dizer é uma proposição.
Feldmann coloca que o que é verdadeiro “é dependente de um mundo objetivo que existe independentemente de nós”, o que não implica que nós não possamos saber como é este mundo objetivo. Ou seja, o nosso modo de ver o mundo limita-se apenas às coisas objetivas.
Feldman introduz a noção de “vagueza” ao citar o exemplo da altura de Michel, numa situação em que alguém, com a posse de algumas informações parciais terá que reconhecer Michel num aeroporto. Podemos abstrair sobre o conceito de altura entre humanos, estabelecendo uma graduação, mas tudo será de forma vaga, pois o que é “alto” para uns pode não ser para outros; o que é “estatura média” para fulano, pode ser “baixa” para beltrano, e assim por diante. Segue-se que uma afirmação é vaga quando dá origem a casos de fronteiras indecifráveis. Por exemplo, a frase “Sócrates era calvo” é vaga porque apesar de ser obviamente verdadeira caso Sócrates tenha zero cabelos, e falsa caso tenha muitos milhares deles, haverá casos intermediários em que não se sabe se a frase é verdadeira ou falsa. Sabemos que toda a linguagem é vaga, entretanto devemos tentar ser tão pouco vagos e tão preciso quanto nos for possível, particularmente quando tratarmos de filosofia.
Até aqui vimos que a crença é necessária para o conhecimento, mas não é suficiente. O conhecimento não pode ter falsidades. Entretanto, dizer que não se pode conhecer falsidades não é o mesmo que dizer que não se pode saber que algo é falso. São duas coisas completamente diferentes. Vejamos os exemplos: a) Maria sabe que é falso que o céu é verde: b) Maria sabe que o céu é verde. As duas sentenças são muito diferentes. A primeira não vai de encontro à factividade do conhecimento, mas no segundo caso vai de encontro visto que Maria não pode saber que o céu é verde, pois o céu não é verde. Portanto, sem verdade não pode haver conhecimento. Logo, a verdade é uma condição necessária ao conhecimento.
O que faz com que uma crença seja verdadeira ou falsa não é o grau da nossa convicção nessa crença. Por mais que estejamos convencidos de que, por exemplo, a Terra é redonda, o que faz essa crença ser verdadeira é que realmente a terra é redonda. Não é o grau da minha convicção. Vale reproduzir aqui um texto de Bertrand Russel, o qual explica bem esse aspecto da crença:
“A verdade ou falsidade de uma crença depende sempre de algo que está fora da própria crença. Se eu acredito que Carlos I morreu no cadafalso, acredito em verdade, não por causa de qualquer qualidade intrínseca da minha crença, que possa ser descoberta examinando apenas a crença, mas por causa de um acontecimento histórico que se deu há dois séculos e meio. Se eu acredito que Carlos I morreu na cama, acredito falsamente: nenhum grau de vivacidade da minha crença, ou cuidado na formação da crença, impede que seja falsa, uma vez mais por causa do que aconteceu há muito tempo, e não por causa de qualquer propriedade intrínseca da minha crença. Logo, apesar de a verdade e a falsidade serem propriedades das crenças, são propriedades que dependem das relações das crenças com outras coisas, e não de qualquer qualidade interna das crenças.”
Bertrand Russel, Os Problemas da Filosofia, 1912, trad. De Desidério Murcho, Cap. 12, 6.

Vimos até aqui que a crença verdadeira não é suficiente para o conhecimento. Lembremos de Platão, no diálogo Ménon, quando nos coloca o seguinte dilema: “Não compete a uma pessoa investigar o que sabe nem o que não sabe. Não investiga o que sabe, pois já o conhece. E para tal não há necessidade alguma de investigação. E também não investigaria o que não conhece, pois não sabe o que vai investigar”.
O terceiro elemento da ATC é a justificação, que para Feldmann é o foco de grande parte da obra em análise. Ele fala que a justificação ocorre em graus. Coloca, ainda, que podemos estar justificados em crer em alguma coisa sem, no entanto acreditar nessa coisa. Mostra que o que está justificado para uma pessoa pode mudar com o tempo. Chama a atenção para um ponto importante: não devemos confundir “estar justificado” em acreditar em alguma coisa com estar apto a mostrar que se está justificado em crer em tal proposição. É o que Feldman classifica como conhecimento aparente e conhecimento verdadeiro.
Até aqui vimos que o fato de alguém ter uma crença verdadeira não significa que tenha conhecimento. Mas para haver conhecimento, não basta termos uma crença verdadeira. A nossa crença tem de estar plenamente justificada. Portanto, é condição sine qua non para o conhecimento que a justificação é uma condição para o conhecimento. Com segurança podemos afirmar que ter justificação para acreditar em algo é ter bons motivos em favor da verdade dessa crença. Tomemos como exemplo a seguinte situação: alguém que acredite que o planeta Vênus é azul porque sonhou com isso, não pode ter justificação para acreditar nisso, entretanto, se essa pessoa acredita que Vênus é azul porque leu em algum livro, e não tem razões para duvidar da confiabilidade do livro, então essa pessoa tem uma justificação para crer que o planeta Vênus é azul. Portanto, uma crença está justificada quando há boas razões a favor de sua verdade.
Apesar de para uma crença estar justificada ser preciso haver boas razões em favor da sua verdade, não é necessário que a pessoa em causa saiba explicar com pormenores que razões são essas. Afinal, a maioria de nós tem justificação para acreditar que dois mais dois são quatro, sem procurar saber detalhes de somenos importância. Isso significa que a crença de um indivíduo pode estar justificada sem que, no entanto essa pessoa precise justificar pormenorizadamente. O que tem relevância é que a sua crença esteja justificada e não que a saiba justificar adequadamente. Portanto, uma crença está justificada quando há bons motivos em seu favor.
Ter justificação para acreditar em alguma coisa não garante a verdade dessa crença. Apenas demonstra que há boas razões em seu favor. Quando existem bons motivos em favor de uma determinada verdade de uma crença, é racional ter essa crença, mesmo que ela seja falsa. Se ter uma justificação para crer em algo não garante que essa crença seja verdadeira, então a crença justificada também não pode ser suficiente para o conhecimento. Segue-se que a crença justificada não é suficiente para o conhecimento. Vamos imaginar o exemplo a seguir: Ptolomeu tinha boas razões para acreditar que a Terra estava parada, mas em realidade não sabia disso. Pessoas diferentes estão em diferentes estados de conhecimento. E no estado de conhecimento em que se encontrava Ptolomeu, havia, uma justificação para que ele acreditasse que a terra estava parada no universo. Todavia, os estados de conhecimento das pessoas não são perfeitos e por isso pode haver boas justificativas para se acreditar em coisas falsas.
O terceiro elemento da ATC é a justificação, que para Feldman é o foco de grande parte da obra em análise. Ele fala que a justificação ocorre em graus; coloca, ainda, que podemos estar justificados sempre em alguma coisa sem, no entanto acreditar nessa coisa. Mostra que o que está justificado para uma pessoa pode mudar com o tempo. Chama a atenção para um ponto: não devemos confundir “estar justificado em acreditar em alguma coisa” com “estar apto a mostrar que se está justificado em crer em tal proposição”. É o que Feldman classifica como conhecimento aparente e conhecimento verdadeiro. Conclui o autor neste segundo capítulo que o conhecimento, baseado na Análise Tradicional de Conhecimento da Perspectiva Standard, pressupõe crença, verdade e justificação, mas não encerra aí a discussão, deixando para os capítulos seguintes a continuação do tema.
Até agora pudemos ver que são três as condições necessárias para que uma proposição seja dada como conhecimento. Primeiro teremos que acreditar nela; tem que ser verdadeira e por fim tem que ser justificada. Vimos também que, isoladamente, nenhuma dessas condições é suficiente para que algo seja dado como conhecimento. Mas se as três forem satisfeitas simultaneamente, podemos mensurar se algo é conhecimento. Apesar de, separadamente, nenhuma das três condições ser suficiente para o conhecimento, tomadas conjuntamente parecem ser suficientes. Por exemplo, se Pedro acredita que vai ser aprovado na faculdade, se tiver boas razões para acreditar que vai passar e se realmente ele vai passar de ano, então é porque o Pedro sabe que vai passar de ano
Continuando o presente relatório, e relembrando que a Perspectiva Standard dava como conhecimento a crença verdadeira e justificada, desafortunadamente, para ela, surge em 1963 Edmundo Gettier, um filósofo americano que com apenas duas laudas de um inédito trabalho refutou a ATC, demonstrando com apenas dois contra-exemplos que o conhecimento não se resume apenas em crença, verdade e justificação. Feldman utiliza alguns contra-exemplos baseados nos apresentados por Gettier, como O das Dez Moedas, O caso Nogot/Havit e A Ovelha no Campo, nos quais procura esgotar todas as possíveis situações de prova de que o conhecimento não pode se basear unicamente na crença, na verdade e na justificação.
Vimos que a definição tradicional do conhecimento foi originalmente exposta por Platão, mas somente no século XX é que veio à tona a discussão sobre vários contra-exemplos que iam de encontro ao velho conceito. E foi justamente Edmund Gettier que apontou vários contra-exemplos, os quais mostram que podemos ter uma crença verdadeira justificada sem que tal crença seja conhecimento.
Nos três exemplos dados pelo autor, em todos a conclusão é verdadeira, mas por coincidência. São situações em que não compete aqui um detalhamento maior, entretanto vamos criar uma nova situação, similar aos casos acima mencionados. Suponhamos que Pedro vai a uma festa onde deverá se encontrar com Joana. O Pedro acredita que Joana vai levar em sua bolsa o livro O Discurso do Método. Até aqui está tudo normal, a crença de Pedro está justificada, ele acredita que Joana levará o livro. Agora vem a parte mais importante do argumento. Suponhamos que Joana decide não levar o livro para a festa, tendo em vista sua bolsa já se encontrar bastante cheia, entretanto ela acaba esquecendo-se de tirar o livro da bolsa. Portanto, a Joana tem o livro na bolsa, o que faz com que a crença de Pedro esteja justificada como verdadeira. Em resumo, em todas as situações Pedro tem uma crença verdadeira justificada e, de acordo com a definição tradicional do conhecimento, Pedro sabe que Ana está com o livro. Mas será que Pedro sabe disso? Afinal de contas a Joana havia mudado de idéia e só levou o livro porque se esqueceu de tirar, pelo que a crença do João é verdadeira, mas por mera coincidência. E uma crença que só é verdadeira por coincidência não pode ser considerada conhecimento. Logo, os contra-exemplos demonstrados mostram que é possível ter crenças verdadeiras justificadas, mas que não são conhecimento, o que contradiz a definição tradicional de conhecimento. Portanto, a definição tradicional de conhecimento está errada, ou seja, a crença verdadeira justificada não é suficiente para o conhecimento.
Ainda assim, os contra-exemplos do estilo-Gettier não são casos de crenças verdadeiras justificadas, posto que eles não são casos de crenças justificadas, e, logo, não refutam a Análise Tradicional do Conhecimento, visto que são casos em que estão sustentados, como vimos, no fator sorte. Enfim, o caminho para se chegar ao conhecimento é árduo e sem fim. Quanto mais duvidamos, mais chances temos de saber se uma determinada crença pode ser justificada ou não.
Para concluir este bloco, o autor vai pôr em pauta a defesa da Análise Tradicional, argumentando que uma maneira de fazê-lo é rejeitar a Falsidade Justificada. Exemplifica com alguns casos como O Caso Típico, O Caso Incomum, em todos os exemplos sempre mostrando que é frágil qualquer argumento que tenha a pretensão de colocar um ponto final na questão do conhecimento.
A seguir, Feldman vai tratar da Teoria sem Bases Falsas, demonstrando que “as crenças que têm bases falsas não são sequer justificadas”. E que ter “todas as bases verdadeiras é uma condição adicional para o conhecimento, mas não para a justificação”. Ou seja, o conhecimento não pode depender de quaisquer bases falsas.
O ponto seguinte a ser tratado é a Teoria sem Anuladores. Mais uma vez, omitimos os exemplos do livro tendo em vista não caber como para do resumo da obra. No caso específico da TA, Feldman nos diz que “alguém tem conhecimento quando não há verdades que anulem a sua justificação. Portanto, a proposta é” acrescentar à ATC o requerimento de não exista anulador. Mas, aqui como em todos os casos, sempre haverá um complicador, e a TA não escapa à regra. Para ele, alguns desses anuladores podem nos enganar, ou seja, nós de fato conhecemos coisas, mas não as conheceríamos se tivéssemos sabido sobre seus anuladores. E conclui: “nós temos sorte de não sabermos sobre os anuladores”.
Ao final do bloco, Feldman coloca a sua proposta. É enfático quando diz que “é seguro dizer que não existe uma solução amplamente aceita para o problema de Gettier levantado à Análise Tradicional do Conhecimento”, acrescentando que tal problema permanece irresolvido. Defende que “nenhuma modificação relativamente pequena da ATC irá produzir uma análise correta do conhecimento. Enfim, ao longo deste trabalho foram questionadas quais as condições para o conhecimento, e foi respondido que o conhecimento é crença verdadeira justificada e mais alguma coisa, ou seja, uma quarta condição para o conhecimento. Só que esta quarta condição continua uma incógnita. E para encerramento do bloco, vale destacar as palavras do autor, as quais são bastantes elucidativas para o tema em foco”:
“A teoria sem bases falsas e a teoria sem anuladores não têm sucesso. O que parece ser crucial é que a justificação não depende essencialmente de alguma coisa falsa. Embora esta idéia não tenha sido formulada em todos os detalhes, ela nos dá uma formulação útil. Logo, nossa resposta para a (Q1) é que o conhecimento requer crença verdadeira justificada que não dependa essencialmente de uma falsidade.”
Como uma homenagem àquele que primeiro trouxe à luz uma definição tripartite para o conhecimento, reproduzo um pequeno trecho da obra de Platão, o Teeteto:
Sócrates: Diz-me, então, qual a melhor definição que poderíamos dar de conhecimento, para não nos contradizermos?
[...]
Teeteto: A de que a crença verdadeira é conhecimento? Certamente que a crença verdadeira é infalível e tudo o que dela resulta é belo e bom.
[...]
Sócrates: O problema não exige um estudo prolongado, pois há uma profissão que mostra bem como a crença verdadeira não é conhecimento.
Teeteto: Como é possível? Que profissão é essa?
Sócrates: A desses modelos de sabedoria a que se dá o nome de oradores e advogados. Tais indivíduos, com a sua arte produzem convicção, não ensinando, mas fazendo as pessoas acreditar no que quer que seja que eles queiram que elas acreditem. Ou julgas tu que há mestres tão habilidosos que, no pouco tempo concebido pela clepsidra, sejam capazes de ensinar devidamente a verdade acerca de um roubo ou qualquer crime a ouvintes que não foram testemunhas do crime?
Teeteto: Não creio, de forma nenhuma. Eles não fazem senão persuadi-los.
Sócrates: Mas para ti persuadir alguém não será levá-lo a acreditar em algo?
Teeteto: Sem dúvida.
Sócrates: Então, quando há juízes que se acham justamente persuadidos de fatos que só uma testemunha ocular, e mais ninguém, pode saber, não é verdade que, ao julgarem esses fatos por ouvir dizer, depois de terem formado deles uma crença verdadeira, pronunciam um juízo desprovido de conhecimento, embora tendo uma convicção justa, se deram uma sentença correta?
Teeteto: Com certeza.
Sócrates: Mas, meu amigo, se a crença verdadeira e o conhecimento fossem a mesma coisa, nunca o melhor dos juízes teria uma crença verdadeira sem conhecimento. A verdade, porém, é que se trata de duas coisas distintas.
Teeteto: Eu mesmo já ouvi alguém fazer essa distinção, Sócrates; tinha-me esquecido dela, mas voltei a lembrar-me. Dizia essa pessoa que a crença verdadeira acompanhada de razão (logos) é conhecimento e que desprovida de razão (logos), a crença está fora do conhecimento [...].
Platão, Teeteto, trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri, 201ª-c.

BLOCO III - (Teoria do Conhecimento de Sócrates a Edmund Gettier)

“As verdades científicas não são simpáticas ao vulgo. Os povos, senhor, vivem de mitologia. Eles tiram da fábula todas as noções de que precisam para viver. Não precisam de muitas; e algumas simples mentiras são suficientes para dourar milhões de existências”.
Les vedetes scientifiques ne sont pás synpathiques au vulgaire. Les peuples, monsieur, vivent de mythologie. Ils tirent de La fable toutes les notions dont ils ont besoin pour vivre. Il ne leur en faut pas peaucoup; et quelques simples mensonges suffisent à dorer des millions d’existences.
(ANATOLE FRANCE (1844-1924), O Anel de Ametista, VII.)
Como matéria para desenvolver a última parte de meu trabalho sobre o curso que ora se finda, escolhi um tema que está intimamente ligado ao que apresentei no bloco anterior, principalmente com a sua parte final, a definição tripartite do conhecimento do Teeteto, diálogo narrado por Platão e cujos interlocutores são de um lado Sócrates e do outro seu discípulo Teeteto. O porquê da escolha de por aí começar é simples: a partir de Sócrates pouco mudou, mesmo porque não há muito que mudar. Julgo, neste primeiro momento do trabalho, reproduzir a cena onde se verifica o ponto chave da definição socrática, para maior clareza de quem vai ler o presente trabalho.
Sócrates: Diz-me, então, qual a melhor definição que poderíamos dar de conhecimento, para não nos contradizermos?
[...]
Teeteto: A de que a crença verdadeira é conhecimento? Certamente que a crença verdadeira é infalível e tudo o de que dela resulta é belo e bom.
[...]
Sócrates: O problema não exige um estudo prolongado, pois há uma profissão que mostra bem como a crença verdadeira não é conhecimento.
Teeteto: Como é possível? Que profissão é essa?
Sócrates: A desses modelos de sabedoria a que se dá o nome de oradores e advogados. Tais indivíduos, com a sua arte produzem convicção, não ensinando, mas fazendo as pessoas acreditar no que quer que seja que eles queiram que elas acreditem. Ou julgas tu que há mestres tão habilidosos que, no pouco tempo concebido pela clepsidra, sejam capazes de ensinar devidamente a verdade acerca de um roubo ou qualquer crime a ouvintes que não foram testemunhas do crime?
Teeteto: Não creio, de forma nenhuma. Eles não fazem senão persuadi-los.
Sócrates: Mas para ti persuadir alguém não será levá-lo a acreditar em algo?
Teeteto: Sem dúvida.
Sócrates: Então, quando há juízes que se acham justamente persuadidos de fatos que só uma testemunha ocular, e mais ninguém, pode saber, não é verdade que, ao julgarem esses fatos por ouvir dizer, depois de terem formado deles uma crença verdadeira, pronunciam um juízo desprovido de conhecimento, embora tendo uma convicção justa, se deram uma sentença correta?
Teeteto: Com certeza.
Sócrates: Mas, meu amigo, se a crença verdadeira e o conhecimento fossem a mesma coisa, nunca o melhor dos juízes teria uma crença verdadeira sem conhecimento. A verdade, porém, é que se trata de duas coisas distintas.
Teeteto: Eu mesmo já ouvi alguém fazer essa distinção, Sócrates; tinha-me esquecido dela, mas voltei a lembrar-me. Dizia essa pessoa que a crença verdadeira acompanhada de razão (logos) é conhecimento e que desprovida de razão (logos), a crença está fora do conhecimento [...].
Platão, Teeteto, trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri, 201ª-c.
O Teeteto começa com a questão: “O que é o conhecimento?” Sócrates desempenha o papel do condutor de um diálogo que procura fazer com que Teeteto produza uma resposta para a questão formulada. Neste primeiro momento, Sócrates procura aquilo que é comum a todos os tipos de conhecimento. Num momento seguinte, o jovem e brilhante matemático propõe que o conhecimento é a percepção das coisas sensíveis, ou seja, conhecer algo é tomar contato com esse algo por meio dos sentidos, ao que Sócrates intervém dizendo que os sentidos de pessoas diferentes são percebidos de maneiras diferentes. Por exemplo, uma leve brisa para uma pessoa pode representar um frio intenso para outra pessoa. Objeta Sócrates que apenas o que é verdadeiro pode ser conhecido. Dito de outra forma, aquilo que me parece a mim, é verdadeiro para mim, ou seja, se eu acredito em algo, acredito que esse algo é verdadeiro. Por essa perspectiva, Teeteto pode continuar defendendo que a percepção é conhecimento. Mas, será que todo conhecimento é percepção? Vejamos: eu posso aprender, por exemplo, que a estátua do Cristo Redentor fica na cidade do Rio de Janeiro, porque estive lá e vi, mas mesmo quando fecho os olhos e a vejo, ou volto para minha cidade, continuo sabendo que o Cristo Redentor fica no Rio de Janeiro. Logo, a minha memória é um exemplo de conhecimento sem percepção. O argumento de Sócrates para contrapor a definição de Teeteto, ele busca na vulnerabilidade da tese de Protágoras segundo a qual cada homem pode ser a medida do que é, mas ao mesmo tempo ele não pode ser a medida do que será. Para Sócrates, a tese de Protágoras dependeria do fluxo universal de Heráclito que é, também inconsistente: se a própria percepção sensível estará em fluxo, um caso de visão poderá tornar-se de repente não-visão; um de audição em não-audição. Ou seja, se considerarmos que conhecimento é percepção teremos que admitir que conhecimento é também não-conhecimento, o que derruba a tese de que conhecimento é percepção.
Obrigado a abandonar a tese de que o conhecimento é percepção, Teeteto apresenta um novo elemento: que o conhecimento consiste nos juízos que a alma reflete, no que Sócrates aprova, momentaneamente, a sugestão. Entretanto, o conhecimento não pode ser definido por esse prisma, posto que há juízos falsos tanto quanto há juízos verdadeiros. Logo, tal tese também não se sustenta. Sócrates argumento que é possível possuir conhecimento sem o ter na alma numa ocasião determinada, como pode ser o caso de alguém possuir uma vestimenta e não usá-la. Para Sócrates, há uma dificuldade na tese de que o conhecimento é o juízo verdadeiro, rebatendo com o seguinte argumento: se um juiz consegue persuadir um corpo de jurados inteiro, produzindo um veredicto tal que a todos convença, os jurados podem ser convencidos, entretanto podem desconhecer os fatos. Neste ponto, Teeteto modifica seu juízo, de modo que o conhecimento passe a ser uma crença (ou juízo) verdadeira e justificada.
Sócrates passa a enumerar três formas distintas segundo as quais uma crença poderia ser justificada. A mais evidente das três seria a situação em que alguém que não seja mudo ou surdo pode formular um juízo, mas neste caso, como distinguir o que é falso do que é verdadeiro? A segunda maneira resume-se em: ter uma crença verdadeira acerca de um dado objeto é ser capaz de fazer de tal objeto uma análise detalhada? Para Sócrates, o conhecimento de algo pressupõe reduzi-lo aos seus elementos mais simples. Diante de tal dificuldade, argumenta que, apesar de o conhecimento dos elementos ser necessário ao conhecimento do todo, ainda não é o suficiente. Por último: uma pessoa que tenha uma crença justificada acerca de algo, deverá ser capaz de produzir uma exposição minuciosa que só se aplique ao objeto em questão.
Ao fim do diálogo, Sócrates concluiu que a terceira definição que Teeteto elabora do conhecimento não é melhor que as anteriores, mas que avançou muito. Portanto, a definição de conhecimento como crença verdadeira justificada foi aceita por muitos filósofos até os nossos dias.
Tem que haver uma fronteira que delimite o que seja conhecimento científico do que seja conhecimento das coisas cotidianas. Sob essa perspectiva, o conhecimento deverá ser buscado tomando-se como base todas as imposições céticas menos radicais; por outro lado, se considerarmos o conhecimento das coisas cotidianas, evidentemente que uma escala gradativa deve ser observada, sem, no entanto, se deixar de ter em mente que se deve chegar ao mais alto grau possível de veracidade.
É praticamente impossível estabelecer uma noção de conhecimento hoje, que seja totalmente diferente, em sua essência, do que estabeleceram os antigos. O exemplo maior é o Teeteto, no qual Sócrates lança mão de sua definição tripartite do conhecimento a partir de um diálogo com um discípulo.
Precedendo à conclusão do presente trabalho, permito-me uma citação que julgo pertinente, em se tratando da seriedade com que o tema conhecimento deve ser tratado. O trecho a seguir foi elaborado por Nietzsche, extraído da obra Filosofia na Época Trágica dos Gregos, parágrafo terceiro, citado em Os Pré-Socráticos:
“O pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes (...). Mas o conceito de grandeza é mutável, tanto no domínio moral quanto no estético: assim a filosofia começa por legislar sobre a grandeza, a ela se prende uma doação de nomes.” “Isto é grande”, diz ela, e com isso eleva o homem acima da avidez cega, desenfreada, de seu impulso ao conhecimento. Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse impulso: ainda mais por considerar o conhecimento máximo, da essência e do núcleo das coisas, como alcançável e alcançado”“.
Assim, desde Platão, o ofício do filósofo que lida com epistemologia ou teoria do conhecimento é o de criar condições para a melhoria das justificações. Esses filósofos resolveram dar um passo a mais na tentativa de aperfeiçoar a definição do conhecimento, dizendo que além da crença verdadeira justificada, o conhecimento carece, ainda, de que a justificação seja irrevogável. Tal caráter de irrevogabilidade seria a pedra de toque, que por sua vez seria a certeza de que a crença que temos em mãos é verdadeira ou falsa. Até então, a definição neoplatônica era aceita sem maiores problemas, entretanto, surge Gettier que, com um paper de apenas três páginas deixa toda a comunidade filosófica em rebuliço. A seguir, transcrevo pequeno texto de Paulo Ghiraldelli, extraído de seu blog, conforme referência bibliográfica no final deste trabalho:
“Essa virada de Gettier na filosofia, que poderia ter alimentado o cético, acabou não alimentando tanto quanto à primeira vista poderia parecer. Pois o que ocorreu foi que todos os filósofos começaram a deixar de lado a definição que apela para justificações, e passaram a buscar definições de conhecimento a partir de causas. Em vez de ter o enunciado, e então buscar justificações, agora, para se ver se há ou não conhecimento, toma-se o enunciado em questão para investigar o que o produziu. Estamos hoje no meio de investigações no campo da teoria do conhecimento que nos levam a causas – são as teorias causais do conhecimento que ganham espaço hoje em dia. E esse campo só se abriu para tais perspectivas, ao menos com tal clareza filosófica, há poucas décadas.”
De Sócrates a Gettier, o que podemos inferir é que não houve nada que pudesse ser posto como definitivo para “fechar” a questão da definição do conhecimento, mesmo porque não há como. O conhecimento tem que ser efetivamente uma via tortuosa, difícil e longa, cujo infinito será sempre inalcançável. E por mais que, além dos três componentes essenciais (crença, verdade e justificação), coloquemos mais componentes, como é o caso dos contra-exemplos apresentados por Edmund Gettier no terceiro quartel do século XX, a Análise Tradicional do Conhecimento vai permanecer vigente, haja vista que os contra-exemplos apresentados são situações plausíveis, é bem verdade, porém são todas sustentadas no acaso, na coincidência. Portanto, não podem “selar” a questão do conhecimento. Tampouco a Análise Tradicional do Conhecimento fecha a questão. Em suma: continua o conhecimento em sua longa caminhada pelos escaninhos das cabeças pensantes, contemplando a todos com o fascínio da sua conquista por parte de nós homens. Em não sendo assim, o que seria de todos nós se o conhecimento de tudo fosse alcançado? É este o sentido da vida: a busca incessante pelo saber verdadeiro, que se traduz, ao fim, no bem maior que toda humanidade almeja: a felicidade.
BIBLIOGRAFIA
FELDMAN. Richard. Evidentislism. Oxford University Press. USA, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. In Filosofia na Época Trágica dos Gregos, parágrafo terceiro. Os Pré-Socráticos, Abril S.A. Cultural e Industrial, 1 ed. Agosto 1973. São Paulo.
KENNY, Anthony. A definição de conhecimento no Teeteto. Retirado de História Concisa da Filosofia Ocidental (Temas de Debates, 1999). Disponível em http://criticanarede.com/termos.html. Visita em 10/08/2008.
GHIRALDELLI JR., Paulo. O que é conhecimento? Disponível em http://ghiraldelli.wordpress.com/2007/11/19/205/ . Visita em 12/08/08.

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