terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Filosofia Contemporânea

16/07/2010
Abaixo transcreco o "resumão" que fiz dos assuntos tratados na discplina História da Filosofia Contemporânea I, encerrada nesta data, tendo como professor Romero Venâncio.

22/07/2010
FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE
(1844-1900)

Tentar resumir Nietzsche em poucas linhas seguramente é uma tarefa difícil. Entretanto, o que pretendo a seguir é colocar um pouco do que pude assimilar do pensamento desse homem que mudou a história do mundo ocidental ao lado de outros vultos como Copérnico, Darwin, Marx e Freud.
Não segui o roteiro de Osvaldo Giacóia Júnior – sua obra, por si mesma, já é um roteiro para aqueles que querem se iniciar em Nietzsche. Assim, preferi outro autor que, por seu estilo envolvente e quase poético, traçou um perfil tanto do homem, como também da obra de Nietzsche, em seu livro História da Filosofia, da coleção Os Pensadores. Estou me referindo ao filósofo e historiador norte-americano Will Durant, nascido em Massachussets e morto em Los Angeles em 1981.
Começa Durant com uma invocação a Darwin, enfatizando que o grande biólogo havia completado o trabalho dos enciclopedistas ao retirarem a base teológica da moral moderna, e que na batalha pela vida nós não precisamos de bondade, mas de força; não de humildade, mas de orgulho; não de altruísmo, mas de inteligência resoluta; e que a igualdade e a democracia são contrários à natureza da seleção e da sobrevivência; que os gênios, e não as massas, são objetivo da evolução; que o poder, e não a justiça, é o árbitro de todas as diferenças e de todos os destinos. Darwin havia posto o homem no seu devido lugar: junto a todos os demais animais, sem privilégio algum. Esse foi o melhor presente que Nietzsche poderia receber. Era exatamente o que ele achava.
Vivia-se uma época em que o crescente vigor militar e industrial da nova Alemanha precisava de uma voz; o arbitramento da guerra precisava de uma filosofia para justificá-la. Não era o cristianismo que iria fazê-lo, mas o darwinismo. E não faltou coragem ao jovem filósofo para mergulhar nessa difícil empresa. Em 1870, quando Nietzsche tinha 26 anos, a Alemanha e a França estavam em guerra.
Em Frankfurt, conta-nos Durant, a caminho da frente de batalha, Nietzsche viu uma tropa de cavalaria passando com um magnífico tropel. Naquele momento, contou o filósofo, veio-lhe a percepção, a visão da qual nasceria toda a sua filosofia: “Senti, pela primeira vez, que a mais forte e mais nobre Vontade de Viver não encontra expressão em uma miserável luta pela existência, mas numa Vontade de Guerra, uma Vontade de Poder, uma Vontade de Dominar”.
Duas de suas idéias características são: a de que a moralidade, bem como a teologia, deveria ser reconstruída nos termos da teoria da evolução; e que a função da vida é provocar “não a melhoria da maioria, que, examinada em termos individuais, mostra ser composta pelos mais inúteis dos tipos”, mas “a criação do gênio”, o desenvolvimento e a elevação de personalidades superiores.”
Um capítulo importante em sua vida é a sua estreita amizade com o compositor Richard Wagner. Mas, da mesma forma como viveu intensamente essa relação, de forma igualmente intensa foi o seu rompimento. A ópera Parsifal?, Talvez tenha sido a gota d’água para esse vínculo se acabasse. Parsifal? Teria sido uma exaltação ao cristianismo, à piedade, ao amor espiritual, e a um mundo redimido por um “puro louco”, um “Louco em Cristo”. Nietzsche odiava o cristianismo. Afastou-se de Wagner e nunca mais falou com ele. “É-me impossível reconhecer grandeza que não esteja unida à franqueza e sinceridade para consigo mesmo. No momento em que faço uma descoberta dessas, as realizações de um homem não valem absolutamente nada para mim”, disse. Nunca perdoou Wagner por passar a ver no cristianismo um valor moral e uma beleza compreendendo seus defeitos teológicos. Desfere violentos golpes ao ex-amigo: “Richard Wagner (...), um romântico decrépito e desesperado, desabou subitamente diante da Santa Cruz.”
Conta-nos Durant que em 1879 Nietzsche esteve à beira da morte. Estava preparado para o fim, quando chamou a irmão e lhe disse: “Prometa que quando eu morrer, só meus amigos ficarão junto do meu caixão, e não haverá uma multidão curiosa. Providencie para que nenhum padre, ou qualquer outra pessoa fale falsidades à beira do meu túmulo, quando já não poderei me proteger; e deixe-me baixar à minha sepultura como um pagão honesto.”
Zaratustra foi sua obra-prima, e ele sabia disso. “Esta obra não tem igual”, escreveria mais tarde. Entretanto, o editor recusou-se a publicar a última parte, pois achava que “não valia um tostão furado”, segundo Durant. Assim, Nietzsche teve que pagar do seu próprio bolso para ver seu trabalho publicado. Ao todo foram vendidos quarenta exemplares; sete foram dados de presente. Só uma pessoa agradeceu. Ninguém o elogiou. “Nunca houve um homem tão só”, acrescenta Durant.
“Se houvesse Deuses, como poderia eu suportar não ser um Deus? Em conseqüência, não há Deuses. Quem é mais ímpio do que eu, para que eu possa me deleitar com seus pensamentos?, escreveu em Zaratustra. Ainda nesta obra: “O que há de grandioso é que o homem é uma ponte, e não um objetivo”. Zaratustra se tornou, para Nietzsche, “um Evangelho sobre o qual seus livros posteriores eram meramente co0mentários, completa Durant.
Foi a eloqüência dos profetas, de Amós a Jesus, que fez da visão de uma classe submissa uma ética quase universal. O “mundo” e a “carne” tornaram-se sinônimos do mal. A pobreza agora é uma forma de virtude. Esse juízo foi levado ao extremo por Jesus, para quem todo homem tinha o mesmo valor e também direitos iguais. Dessa doutrina nasceram a democracia, o utilitarismo e o socialismo. O progresso agora era definido ao amparo dessas filosofia plebéias, em termos de progressivas igualização e vulgarização, em termos de decadência e de vida declinante, escreveu Nietzsche em Além do Bem e do Mal.
Para Nietzsche, por trás de toda essa moralidade está uma vontade secreta de poder. Até mesmo no amor à verdade existe o desejo de possuí-la. Do Nietzsche psicólogo, temos que “a maior parte de nossa atividade intelectual acontece inconscientemente, sem ser percebida por nós; (...) O pensamento consciente (...) é o mais fraco”, escreveu em Humano Demasiado Humano.
Chamo a atenção para esse aspecto que considero de fundamental importância: se o Humano Demasiado Humano foi publicado em 1870, quando Sigmund Freud tinha apenas 14 anos. Portanto, podemos supor que Nietzsche antecipa-se a Freud ao fazer sua observação sobre o inconsciente humano, conforme citado linhas acima.
Acreditava haver incompatibilidade entre amar e ser sábio ao mesmo tempo. Para ele, os votos dos amantes deveriam ser declarados nulos e o amor deveria ser impedimento legal para o casamento. Os melhores deveriam casar com os melhores. O amor ficaria para a ralé. O propósito do casamento não seria apenas a procriação, mas também o desenvolvimento. “Casamento”, escreveu, “assim eu chamo a vontade de duas pessoas criarem aquele que é mais do que os que o criaram”, escreveu em Zaratustra.
Para Nietzsche, o caminho para o super-homem deveria passar pela aristocracia. A democracia deveria ser erradicada antes que seja tarde demais. O triunfo de Cristo, assim pensava, foi o começo da democracia; “o primeiro cristão era, em seus instintos mais profundos, um rebelde contra tudo aquilo que fosse privilegiado; viveu e lotou incansavelmente por “direitos iguais”; democracia significa “deriva, a veneração da mediocridade e o ódio à excelência.”
Socialismo seria inveja: “eles querem algo que nós temos”, escreveu em Zaratustra. Achava que o escravo só é nobre quando se revolta. Para ele, o escravo é mais nobre do que os seus senhores modernos – a burguesia. Diz ainda que é um sinal de inferioridade da cultura do século XIX o fato de o homem de dinheiro ser objeto de tanta adoração e inveja.
Em O Anticristo escreveu que sempre e em toda parte, alguns serão líderes, e outros seguidores; a maioria será compelida, e estará feliz, em trabalhar sob a direção intelectual de homens superiores. Disse que “mandar é mais difícil do que obedecer”. E que a sociedade ideal seria dividida em três classes: produtores, funcionários públicos e governantes.
Ainda no que se refere à aristocracia, defendia que nada pode contaminar e enfraquecer tanto uma aristocracia quanto o casamento de novos-ricos. Todo nascimento é o veredicto da natureza em relação a um casamento. O homem perfeito só aparece depois de sucessivas gerações de seleção e preparação. “Os ancestrais de um homem pagaram o preço daquilo que ele é.”
Em Ecce Homo escreveu que “aquele que souber respirar no ar de meus escritos estará consciente de que se trata do ar das alturas, que é estimulante. O homem deve ser feito para ele; caso contrário, é provável que o mate.”
Para encerrar, após este resumo do trabalho de Will Durant, passo a discorrer sobre a crítica e conclusão do pensador norte-americano sobre Nietzsche, também de forma resumida, tendo eu destacado os pontos que julguei relevantes. Para Durant, Nietzsche não reconhece o lugar e o valor dos instintos sociais. Repelido em sua busca de amor, volta-se contra a mulher “com uma amargura indigna de um filósofo e anormal em um homem.” Entretanto, diz Durant, mais verdadeiras em relação a ele do que ao Jesus ao qual ele as dirigiu, são as seguintes palavras suas: “Ele morreu cedo demais; ele próprio teria revogado a sua doutrina se tivesse atingido uma idade mais madura; nobre bastante para revogar, ele era.”
Por fim, Nietzsche “tem sido refutado por todo aspirante à respeitabilidade; e no entanto, permanece como um marco no pensamento moderno e um pico de montanha na prosa alemã.” Ele conseguiu , de fato, fazer um inventário crítico de instituições e opiniões que durante séculos tinham sido consideradas como naturais: a) abriu uma nova perspectiva para o drama e a filosofia gregas; b) mostrou o germe da decadência romântica na música de Wagner; c) analisou a natureza humana com uma sutileza tão afiada quanto um bisturi de um cirurgião; d) trouxe à lume certas raízes ocultas da moralidade como nenhum outro pensador moderno havia feito, embora, naturalmente, os pontos essenciais da sua ética se encontrem em Platão, Maquiavel, Hobbes, La Rochefoucauld; e) introduziu no domínio da ética um valor até então praticamente desconhecido: a aristocracia; f) forçou uma reflexão honesta sobre as implicações éticas do darwinismo; g) escreveu o maior poema em prosa da literatura do século e, acima de tudo, concebeu o homem como algo que o homem deve ultrapassar.
A doença e uma progressiva cegueira foram o lado fisiológico de seu colapso. Começou a dar sinais de paranóicas manias de grandeza e perseguição.
Nietzsche morreu em 1900. “Raramente um homem pagou um preço tão alto pelo gênio”, conclui Will Durant.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
DURANT, Will. A História da Filosofia. Capítulo IX. In: Friedrich Nietzsche. Coleção Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. – São Paulo, 1996, PP-371-410.



RESUMO GERAL

a) A EPISTEME NO SÉCULO XIX: A IDADE DA HISTÓRIA

A Idade da História

O século XIX desencadeou a segunda era das revoluções da modernidade. O mundo do capital instala uma escravidão ainda pior que as antigas. A primeira metade do século é o tempo das revoluções burguesas.
Atônita com a aceleração da história cadenciada pelas revoluções e contra-revoluções políticas, a humanidade vê-se agora diante da necessidade de interiorizar algo bem mais abstrato, mas de efeitos não menos concretos na vida de cada um.
A biologia desde Aristóteles operava com o princípio da fixidez do ser, e era precisamente de suas transformações que era precisa dar conta. A divida do espírito à época das luzes era: é preciso encontrar sob a extensão cartesiana a força, sob o corpo-máquina a vida. A divisa do século XIX passa a ser: é preciso reencontrar sob a força newtoniana o devir, sob a vida a história.
Darwin rompe com o princípio da constância do ser e busca o segredo da natureza viva nos pontos de fuga do devir. A criatura tida por divina não goza de nenhum privilégio na ordem da natureza. É um novo modo de ser do homem que se anuncia. “O homem não tem essência, tem máscaras”, diz Nietzsche.

A antropologia do Homem Histórico

O tempo é mais metafísico do que o espaço. “Parte do mesmo é passado e já não existe, outra parte é futuro e não existe todavia, outra enfim é presente e existe, mas desvanece”, dizia Aristóteles”. “Quando não me perguntam, o sei; quando me perguntam, não sei”, dizia Santo Agostinho.
Os antigos acreditavam que o devir histórico é afeto ao universo dos acidentes e o tempo do mundo é o marco vazio e indiferente às coisas que o habitam. Os homens desde os tempos mais remotos sabem-se constituídos por uma história e por assim dizer governados pelas potências noturnas do tempo: o Destino, a Fortuna, a Providência, etc.
O homem do mito e as sociedades primitivas são conhecidos como um homem a-histórico e uma sociedade sem história. Nada mais inexato. Falar de um homem a-histórico e de uma sociedade sem história não faz sentido, valendo apenas para nós que vivemos uma época demasiadamente habituada a identificar a história com a mudança e com o novo. Para o mito e o homem primitivo, a história não está voltada para o futuro, mas para o passado, e nela o fluxo do devir é sempre acompanhado de seu outro. O homem do mito sabe-se constituído por uma história sagrada, cujos acontecimentos ocorrem no tempo das origens.
É a partir do registro do eterno e do ser pleno que Platão trata de pensar o homem e as coisas. Embora ele tenha pensado o devir como deficiência de ser e estendido essa concepção ao homem, ele nos mostra que a falta ou privação do homem não é de todo sem remédio, pois os deuses fizeram-lhe dom do amor, meio pelo qual eles podem remediar a falta e recuperar, mesmo que por um só instante, sua antiga natureza irremediavelmente perdida.
Aristóteles nos fala de algo parecido: esvazia as potências noturnas do tempo, define a polis como comunidade de obras e o homem político pela plenitude da cidadania, e pensa a ação política como afirmação do ser e realização das virtualidades do varão virtuoso.
A natureza do homem trágico é dual, e as notas que o qualificam não são as mesmas do homem ético platônico e do homem político aristotélico. O tema da fragilidade da condição humana buscam os trágicos no mito, recuando a uma época em que os homens são frágeis demais para dispensarem o concurso dos deuses. O homem grego não é de todo alheio à história.
À diferença do mito e da tradição helenístico-romana, a tradição judeu-cristã nos dá uma nova figura do tempo e uma nova forma da história, voltadas não para o passado ou para o presente, porém para o futuro. A história dos homens deita suas raízes na interseção do mundano, isto é, o que pertence ao tempo e aos homens, e do divino, vale dizer, o que pertence a Deus e à eternidade.
Antes da criação, não há tempo, mas Deus e a eternidade; depois da criação, o tempo é retorno, volta ao paraíso perdido. “É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras”, ainda de acordo com Agostinho. O passado é o que se recorda; o futuro, o que se espera; o presente, aquilo a que se está atento.
Foi preciso aguardar um pouco mais, o século XIX, para que, na esteira da queda do ser no tempo, se instalasse uma antropologia que nos fala não de uma história exterior, mas interior ao homem. A história devolve o homem ao tempo, senhor absoluto da vida e da morte, e nele busca a arché do seu ser: o devir.
Kant é o primeiro a pensar o problema do homem nos quadros de uma analítica da finitude, onde história e antropologia se reenviam uma à outra, como as duas faces de uma mesma moeda: de um lado, não há história senão onde há um ser lacunar; de outro, não há um ser lacunar, senão onde há história.
É a partir desta contradição irredutível entre o ser e o devir que o século XIX pensa o homem e a história. Para Kant, o homem é um ser empírico-transcendental; em Hegel, a história é o devir (“somente o presente é; o antes e o depois não existem; o presente é o resultado do passado e está grávido do futuro; então o verdadeiro presente é a eternidade”).
Por fim, em Marx e em Nietzsche, a história é a suspensão do devir e eterno retorno. Nietzsche abole o tempo ao nos falar do retorno, da morte de Deus e da errância do último homem. Marx imobiliza a história ao nos falar do comunismo e da suspensão do dever: a revolução.

A Estratégia Histórica

Palco de uma revolução do espírito, a Episteme moderna adotou como discurso três estratégias distintas: a) modo de ser das coisas(modus essendi), no XVII, onde a estratégia é essencialista e seu elemento próprio é o ser, ou seja, a essência. E as qualidades do ser os seus acidentes, atributos, modos, etc.; b) modo de agir(modus operandi), no XVIII, onde a estratégia é fenomenista e seu elemento próprio é o fenômeno e as correlações dos fenômenos; c) modo de fazer(modus faciendi), no XIX, no qual a estratégia é historicista e seu elemento próprio é o devir e as correlações do devir.
Locke e Condillac reduzem a sensibilidade a uma pura sensorialidade.
Assistimos, no curso do século XIX, a uma espécie de processo contra a idade das luzes. Renan diz que o século XVIII é a época que não soube compreender nem o homem nem a natureza.
Goethe compara a obra newtoniana a um buraco de ratos, a um antro de corujas, e afirma que é um verdadeiro dever abater esta “Bastilha” e não deixar pedra sobre pedra.
Engels se refere a Newton como ao asno da indução.
Darwin e Lamarck rompem com o princípio da constância do ser e dobram a cadeia da natureza ao tempo,
A Episteme no século XIX sente-se mais à vontade com categorias orgânicas do que mecânicas, e prefere a árvore à máquina: em biologia, fala-se do aparecimento, do desenvolvimento e do desaparecimento de espécies; e, ciências humanas, das famílias e filiações lingüísticas, das raízes do direito positivo nas regras não-escritas dos costumes, das séries temporais da história, da vida do espírito etc.(Leroux). A Episteme no século XIX prefere a vida ao agregado, o movimento ao repouso, e busca na história (devir) a chave do mundo da vida e dos homens (Pierre Leroux).
Para Darwin, os sábios em geral e sobretudo os físicos operam e raciocinam sobre a natureza como se a vida estivesse ausente, como se a natureza estivesse marcada, no que diz respeito ao tempo e à mudança, por uma eterna imobilidade.
Para Gusdorf, a ciência verdadeira é a ciência da vida.
A organização da sociedade dos homens e do trabalho não obedece com certeza ao mesmo princípio pelo qual o bicho-da-seda fabrica seu casulo, a formiga constrói seu formigueiro, a abelha seu alvéolo.
Marx, em mais de uma ocasião, reconheceu suas dívidas para com Darwin.
A humanidade sempre se mostrou um tanto refratária em nos oferecer um conhecimento racional da história, e menos ainda uma história interior aos homens, preferindo simplesmente abandoná-la aos caprichos do devir cósmico que os ultrapassa, ou atribuir sua racionalidade ou falta de racionalidade às ações arbitrárias dos deuses, ou buscar sua inteligibilidade alhures, na natureza.
Em Bacon e em Descartes, o homem é uma natureza, e a história pertence aos fatos, não à essência das coisas; em Espinosa a essência do homem é o conatus, e o conatus é o reverso da história, pois é o absoluto e a eternidade; em Montesquieu e Smith a história é o lugar onde as coisas duram ou acontecem.
Será preciso esperar o século XIX para que um novo regime do saber se instale. Tão logo a filosofia passou a freqüentar a história não tardou a apresentar férteis resultados em seus diferentes domínios.
Quem vai dar-nos a “canônica” deste novo regime do saber que com ela, a escola histórica, se instala é Kant, muito embora ele não fosse particularmente dotado de um espírito histórico. Kant havia mostrado que o conhecimento pode organizar-se de três maneiras: ou deve-se fundar num mais além da experiência, ou deve-se fundar no pensamento puro; e uma história transcendental, fundada nas idéias a priori da razão.
A Episteme do século XIX vai buscar em Kant os fundamentos do conhecimento histórico. Um saber total da realidade total, é o que caracteriza a trajetória da Episteme no século XIX, em contrapartida, é o abandono puro e simples da metafísica da história em favor de uma abordagem mais colada no sensível.

A Fundação Histórica do Conhecimento

De Descartes (1596-1650) a Hume (1711-1776), da morte do primeiro ao nascimento do segundo um intervalo de 125 anos, o processo do conhecimento consiste num jogo de três termos (objeto, sujeito e representação), e o edifício da teoria do conhecimento foi construído para resolver um só problema: o problema do conhecimento, que é o problema de saber como podemos garantir a conformidade da representação ao representado e assim instalar a sua verdade. Todavia, a solução do problema do conhecimento assim entendida, seja na via interiorista seja na via exteriorista, é, aos olhos de Kant, uma pseudo-solução e na realidade encerra uma aporia insolúvel.
Descartes, para vencer a dúvida hiperbólica e exorcizar o fantasma do malin génie, parte do cogito, funda Deus no cogito e o cogito em Deus.
Kant nos propõe uma teoria do conhecimento na qual o problema da prova e da fundamentação é redefinido para além dos quadros da tradição clássica, como ele próprio afirma, são quatro as perguntas que armam a sua obra: a) que posso eu saber? b) que devo fazer? c) que me é permitido esperar? d) que é o homem?
Embora derive de Kant e do criticismo, o problema do conhecimento adquire em Hegel uma outra configuração, pois, se ele nos fala de uma atividade da razão que é em si mesma prática, é para exigir-lhe bem mais e dar ao problema da fundamentação do conhecimento a forma de uma fundação teórica e mesmo absoluta, exigências de que Kant não compartilha.
O problema do conhecimento não é nem o da possibilidade do erro (Descartes), nem o da possibilidade da verdade (Kant), mas o do efetivamente verdadeiro (Espinosa), e este problema se resolve na realidade do discurso que, operando no elemento da verdade, não há por que pedir uma caução ou uma garantia externa: a prova da prova (p. 300).
A grande audácia de Hegel foi pensar um saber em que a distinção sujeito-objeto é interna à consciência (p. 300). Na sua última das Lições sobre a Filosofia, Hegel sugere que o verdadeiro sujeito do Espírito (Absoluto), na sua marcha da história, não é o homem, mas simplesmente Deus.
Nietzsche na sua filosofia dos martelos diz que saber absoluto = saber do absoluto = o ponto de vista de Deus! Que presunção: Deus, quer dizer, Hegel, vivendo em Berlim. É neste quadro que se inscreve, na segunda metade do século XIX um conjunto de reflexões a contracorrente do hegelianismo e que deu origem a este vasto movimento que se poderia chamar de processo de dissolução do idealismo alemão, levado a cabo por Feuerbach (1804-1872), Marx (1818-1883), Nietzsche (1844-1900), Dilthey (1833-1911) e Kierkgaard (1813-1855), num esforço notável para recolocar o problema do conhecimento em bases novas.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento. O problema da fundamentação das ciências humanas. Edições Loyola. Coleção Filosofia. São Paulo, 1999. In: A episteme no século XIX: A idade da história. – PP. 267-303.

b) A IDEOLOGIA RELIGIOSA

Palavras-chave: fé, esperança, caridade, peregrinação, pátria, heroísmo cristão, pobreza, sofrimento, Jesus Cristo, socialismo.

Ficha de Citações:
• Há países nos quais a palavra “cristão é simplesmente sinônimo de “camponês”, ou mesmo de “homem” (346).
• A religião tornou-se algo parecido com um acúmulo de nuvens (346).
• ...o que não tinha precedentes era a secularização das massas (346).
• Se havia uma religião florescente entre a elite do final do século XVIII, esta era a maçonaria racionalista, Iluminista e anticlerical (347).
• Bacon e Hobbes estiveram associados como indivíduos à velha e corrupta sociedade (348).
• Os filósofos do século XVIII não se cansavam de demonstrar que uma moralidade “natural” e os altos padrões pessoais do livre pensador individual eram melhores do que o cristianismo (348).
• Com as revoluções americana e francesa as principais transformações políticas e sociais foram secularizadas (350).
• ...o secularismo dos novos movimentos socialista e trabalhista se baseava no fato, igualmente novo e mais fundamental, da indiferença religiosa do novo proletariado (351).
• A classe trabalhadora como grupo era indubitavelmente menos atingida pela religião organizada do que qualquer outro núcleo de pobres da história mundial (352).
• A tendência geral do período desde 1789 até 1848 foi, portanto, de uma enfática secularização (352).
• Quando sociedades tradicionais mudam algo tão fundamental como sua religião, é claro que elas devem estar enfrentando novos e maiores problemas (355).
• ...o Islamismo é um poderoso meio de reintegração das estruturas sociais (355).
• Os negros muçulmanos eram maus escravos: os haussas foram mortos ou deportados de volta para a África (355).
• 1789 a 1848: período do renascimento do islamismo mundial (357).
• ...o caráter social das novas seitas combatia sua retirada teológica do mundo (368).
• Seu mais dramático produto foi a seita dos santos dos últimos dias (os mórmons), fundada pelo profeta Joseph Smith, que recebeu sua revelação próxima a Palmyra, Nova York, na década de 1820, e conduziu seu povo em êxodo para algum Sião remoto e que eventualmente o levou aos desertos de Utah (361).
• Em termos puramente religiosos, portanto, nosso período foi de uma crescente secularização e de indiferença religiosa (na Europa), combatidas pelo despertar da religião em suas formas mais intransigentes, irracionais e emocionalmente compulsivas (363).
• O materialismo mecânico francamente ateu do filósofo alemão Feuerbach (1804-1872) na década de 1830 se confrontava com os jovens antiintelectualistas do “Movimento de Oxford”, que defendiam a literal exatidão das vidas dos santos medievais (363).
• (O Movimento de Oxford foi um movimento religioso de anglicanos da Alta Igreja, a maior parte deles de membros da Universidade de Oxford, na primeira metade do século XIX [1830-1833...]. O principal ponto defendido pelo movimento era demonstrar que a Igreja Anglicana era uma descendente direta da Igreja estabelecida pelos apóstolos. Dos grandes líderes do movimento eram Edward Bouverie Pusey e John Henry Newman. O Movimento de Oxford influenciou os assim chamados anglo-católicos na sua compreensão do anglicanismo. Foi um movimento de renovação espiritual do anglicanismo).
• Mas este retorno à religião militante, literal e ultrapassada tinha três aspectos. Para as massas, era, principalmente, um método de luta contra a sociedade cada vez mais fria, desumana e tirânica do liberalismo da classe média: segundo Marx, era “o coração de um mundo sem coração, como é o espírito de um mundo sem espírito...o ópio do povo” (363).
• Para a maioria dos governos estabelecidos, bastava que o jacobinismo ameaçasse os tronos e as Igrejas os preservassem. Entretanto, para um grupo de intelectuais e ideólogos românticos, a aliança entre o trono e o altar tinha um significado mais profundo: o de preservar uma velha sociedade viva e orgânica contra a corrosão da razão e o liberalismo (364).
• O mais importante explorador destas profundezas do coração humano, o dinamarquês Sören Kierkgaard, 1813-1855, era oriundo de um pequeno país e atraiu muito pouca atenção de seus contemporâneos: sua fama é totalmente póstuma (364).
• A França foi um país sempre receptivo às tendências eclesiásticas que estivessem em pequeno desacordo com a Igreja de Roma (367).
• Ser huguenote francês equivalia a ser um liberal moderno (368).
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
HOBSBAWN, Eric J., 1917 - . A era das revoluções, 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra. In: A Ideologia Religiosa, pgs. 345-368.

c) A ESSÊNCIA DO CRISTIANISMO

Ludwig Feuerbach

Ficha de Citações
Apresentação
1. Sou radicalmente diferente dos filósofos que arrancam os olhos para ver melhor.
2. A imaginação e a religião são expressões permanentes da própria essência humana.
3. A história é a arena onde a essência humana se expressa.
4. O homem é um ser partido entre duas realidades.
5. Teísta e ateu habitam um mesmo cosmo
6. O discurso religioso (...) é a expressão-protesto da criatura oprimida, impossibilitada de se realizar dentro das condições dominantes.

Prefácio à primeira edição
1. A filosofia ou religião em geral (...) são idênticas.
2. É inteiramente impossível que algum homem acredite em alguma coisa que contradiga realmente pelo menos à sua faculdade lógica e imaginativa (18).
3. Quando o homem não mais sente e pensa em harmonia com a sua fé, quando então a fé deixa de ser para os homens uma verdade penetrante, só então será salientada com uma ênfase especial a contradição da fé, da religião com a razão (18).
4. A fé não pode se desfazer da razão natural (18).
5. A especialidade é a fragrância da fé (19).
6. A religião é essencialmente dramática.
7. A teologia não é tratada sem como uma pragmatologia mística (...), nem como ontologia (...), mas como uma patologia psíquica (19).
8. O cristianismo moderno (...) vive de esmolas do passado (20).
9. O segredo da teologia é a antropologia (20).
10. Não obstante “a liberdade infinita e personalidade” do mundo moderno ter assim se assenhorado da religião e teologia cristãs (...), mesmo assim a essência sobre-humana e sobrenatural do antigo cristianismo ainda assombra o nosso tempo e a nossa teologia pelo menos como um fantasma na cabeça em conseqüência da sua indecisa mediocridade e da sua falta de personalidade (20-21).
11. Uma ilusão só é bela enquanto ela não é tida por ilusão, mas por verdade (22).

Prefácio à segunda edição

1. A verdade é o limite da ciência (25).
2. O meu livro é uma tradução fiel e correta da religião cristã (26).
3. Sou astronomicamente diferente dos filósofos que arrancam os olhos da cabeça para poderem pensar melhor (27).
4. Não produzo coisas a partir do pensamento, mas inversamente os pensamentos a partir das coisas (27).
5. A idéia é para mim somente a confiança no futuro histórico (27).
6. Tudo o que é meu carrego comigo mesmo (27).
7. A especulação só deixa a religião dizer o que ela própria pensou e dito de maneira muito melhor do que a religião (28-29).
8. Apenas mostrei o mistério da religião cristã, apenas arranquei-o da teia contraditória das mentiras e tapeações da teologia (29).
9. O ateísmo (...) é o mistério da própria religião (29).
10. A própria religião (...) em nada mais crê a não ser na verdade e divindade da essência humana (29).
11. O desenvolvimento se satisfaz em cada estágio, mas a luta somente na meta final (29).
12. O verdadeiro significado da teologia é a antropologia (30).
13. Entre os predicados da essência divina e humana (...) não há distinção, são idênticos 30).
14. A distinção que é feita entre os predicados antropológicos e teológicos (...) dissolve-se no nada, num non sense (30).
15. Não digo absolutamente “Deus não é nada, a Trindade não é nada, a palavra de Deus não é nada, etc., mostro apenas que tais coisas não são o que são na ilusão de teologia, que não são mistérios estranhos, mas íntimos, os mistérios de natureza humana (31).
16. A religião, nas determinações que ela atribui a Deus (...) apenas define ou objetiva a verdadeira essência da palavra humana (31).
17. A religião é o sonho do espírito humano (31).
18. Transformo o objeto da fantasia no objeto da realidade (31).
19. O mais alto grau de ilusão é também o mais alto grau de sacralidade (32).
20. Erudição e filosofia são para mim apenas os meios para mostrar o tesouro escondido no homem (34).
21. Sempre tomei por critério da verdadeira forma literária e didática (...) o homem universal (34).
22. O cristianismo já de há muito desapareceu não só da razão, mas também da vida humana (36).
23. Uma verdade nunca veio ao mundo com enfeites (37).

Introdução
Capítulo I
A ESSÊNCIA DO HOMEM EM GERAL

1. A religião se baseia na diferença essencial entre o homem e o animal (43).
2. A ciência é a consciência dos gêneros (43).
3. A essência do homem (...) não é apenas o fundamento, mas também o objeto da religião. Mas a religião é a consciência do infinito; (...) a limitação do ser é também a limitação da consciência; (...) uma consciência limitada não é consciência; a consciência é essencialmente de natureza universal, infinita. A consciência do infinito não é nada mais que a consciência da infinitude da consciência. Ou ainda: na consciência do infinito é a infinitude da sua própria essência um objeto para o consciente (44).
4. Um homem completo possui a força do pensamento, a força da vontade e a força do coração (44).
5. Verdadeiro, perfeito, divino é apenas o que existe em função de si mesmo (45).
6. A música é o idioma do sentimento (45).
7. O homem nada é sem objeto (46).
8. A religião retira os poderes, as qualidades e as essências do homem de dentro do próprio homem e as diviniza como se fossem seres separados (46 – nota de rodapé).
9. O ser absoluto, o Deus do homem é a sua própria essência
10. Consciência é a marca característica de um ser perfeito.
11. Vaidade é apenas quando o homem namora a sua própria forma individual, mas não quando ele admira a forma humana.
12. Todo ser se basta a si mesmo.
13. Se as plantas tivessem olhos, gosto e juízo, cada planta iria escolher a sua flor como a mais bela.
14. Deus é o sentimento puro, ilimitado, livre.

A ESSÊNCIA DA RELIGIÃO EM GERAL

1. No objeto religioso a consciência coincide imediatamente com a consciência de si mesmo.
2. O objeto do homem nada mais é que a sua própria essência objetivada.
3. A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo, o conhecimento de Deus o conhecimento que o homem tem de si mesmo.
4. Deus é a intimidade revelada.
5. A religião é a consciência primeira e indireta que o homem tem de si mesmo.
6. A religião é a essência infantil da humanidade.
7. O que foi considerado e adorado como Deus é agora reconhecido como algo humano.
8. Todas as qualidades da essência divina são qualidades da essência humana.
9. O que não tem efeito, não possui existência para mim.
10. Quando o homem retira de Deus todas as qualidades é este Deus para ele apenas um ser negativo, nulo
11. A ausência de atributos e a incognoscibilidade de Deu (ambos são sinônimos) é então somente um fruto dos últimos tempos, um produto da descrença moderna.
12. Quem se conhece conhecerá também a Deus (nota de rodapé, pg. 57).
13. Quem teme ser finito, teme existir.
14. O ceticismo é o pior inimigo da religião.
15. Deus é então a essência do homem contemplada como a mais elevada verdade.
16. Tudo que a teologia e a filosofia consideraram até agora como Deus, absoluto, essencial, não é Deus; mas tudo que não consideraram como Deus é exatamente Deus.
17. O homem, em especial o religioso, é a medida de todas as coisas, é a medida da realidade (sentença do filósofo sofista Protágoras).
18. A religião compreende todos os objetos do mundo.
19. Deus é um ser inteiramente diverso de algo humano ou semelhante a humano, só conhecemos no futuro, i.é., no outro mundo.
20. O tempo é que é o meio para se conciliarem oposições e contradições em um único ser.
21. Spinoza fala de infinitos atributos da substância divina, mas com exceção do pensamento e extensão não menciona nenhum. Na verdade, não tem nenhum predicado, i.é., nenhum predicado definido, real.
22. Como posso definir um belo quadro como belo se a minha alma é uma decadência estética?
23. “Deus só pode amar a si e pensar em si e trabalhar somente para si. Deus, ao criar o homem, procura apenas o seu proveito, a sua glória” (Pierre Bayle, Uma contribuição para a história da filosofia e da humanidade).
24. A diferença entre o agostianismo e o pelagianismo é exatamente que aquele expressa à maneira da religião o que este expressa à maneira do racionalismo.
25. O agostinianismo é apenas um pelagianismo às avessas, o que um estabelece como sujeito, o outro estabelece como objeto.
26. Em Deus só é objeto para o homem a sua própria atividade.
27. O desenvolvimento da religião consiste em que o homem cada vez mais nega a Deus e se afirma. Tudo que, num período posterior ou num povo culto, é atribuído à natureza ou a razão, é num período anterior e num povo ainda inculto atribuído a Deus.
28. O que ontem ainda era religião não é mais hoje e o que é hoje tido por ateísmo será amanhã tido por religião.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
FEUERBACH, Ludwig (1804-1872). A essência do cristianismo. Tradução e notas de José da Silva Brandão. – Campinas, SP : Papirus, 1988. – PP. 7-73.
d) Apresentação – Rubens Enderle
É na Crítica da filosofia do direito de Hegel que Marx imprime a noção de “crítica filosófica” os seus traços mais decisivos. Na Crítica, essa noção aparece contraposta tanto ao “dogmatismo especulativo de Hegel”, quanto ao “erra dogmático oposto” da crítica vulgar, termo com o qual Marx refere o grupo berlinense dos Livres, cujos principais representantes eram Bruno Bauer e Max Stirner.
A essa “crítica vulgar”, Marx contrapõe a crítica ontogenética, que corresponde a gênese e a necessidade de suas contradições “em seu significado específico”.
O legado de Feuerbach vak ser decisivo na crítica de Marx aos fundamentos da filosofia hegeliana.
Já no Prefácio à Crítica da Economia Política (1842-43), Marx diz de sua disposição em empreender uma revisão crítica da filosofia do direito de Hegel. A Crítica significa um divisor de águas na obra marxiana, marcando a transição de sua fase juvenil para a fase adulta, a consolidação dos pressupostos que continuarão a orientar a produção de seu pensamento até sua maturidade.
O tema fundamental da crítica de Marx a Hegel é o da separação e oposição modernas entre Estado e sociedade civil e a tentativa de Hegel de conciliar esses extremos na esfera do Estado, concebido segundo o modelo da monarquia constitucional prussiana.
As contradições e insuficiências de Hegel são explicadas a partir de seu próprio fundamento, ou seja, dos pressupostos ontológicos da especulação hegeliana, que constitui o primeiro objeto da crítica de Marx.
O que Marx denuncia como o “mistério” da especulação hegeliana é a ontologização da idéia. Em Hegel, família e sociedade civil são produzidas pela idéia de Estado, engendradas por ela.
Para Marx, sob influência de Feuerbach, tratava-se justamente de afirmar ser o finito como o ser verdadeiro, o verdadeiro sujeito. Feuerbach centra sua crítica à especulação hegeliana na denúncia não de um erro de método, mas na falsidade da determinação ontológica em que o método está montado.
Hegel não dá a lógica do corpo político; ele dá à sua lógica um corpo político. Falta-lhe um modo de determinar “a maneira racional, adequada, de subsunção”, ou seja, falta-lhe um critério que dê a cada categoria lógica uma necessidade ontológica.
O segundo momento da crítica marxiana trata fundamentalmente do tema da alienação política. Para Marx, “a alienação política tem lugar no momento em que o povo, ao se submeter à sua própria obra, perde seu estatuto fundante e as posições são invertidas. O que era o todo passa à posição de parte, e vice-versa. Essa oposição, que se encontra nas bases do Estado moderno, esconde-se em Hegel sob o véu da especulação.
A crítica de Marx à alienação política guarda um vínculo profundo com o pensamento de Rousseau. O poder executivo deixa de ser uma parte submetida à vontade geral e passa a confrontá-la como um poder independente, ao mesmo tempo em que a vontade geral se vê rebaixada à condição de um poder particular do Estado.
A defesa hegeliana da constituição estamental assenta na concepção do povo como uma “massa” que “não sabe o que quer”, uma “multidão e uma turba” dotada de “uma opinião e um querer inorgânicos”, opostos ao Estado. Povo e Estado formam, em Hegel, extremos de um silogismo, cujo termo médio é composto pelos estamentos, os quais representam a própria contradição no interior do Estado político.
Em Marx, a vontade geral só erra quando enganada. Por isso, afirma, a questão prático-política fundamental é a participação, no poder legislativo, não de “todos singularmente”, mas dos “singulares como todos”.
A contradição entre Estado e sociedade civil permanecia nos quadros de um problema de ordem política, uma deficiência localizada no terreno da “vontade”. Imediatamente após a Crítica, nos Anais Franco-Alemães, Marx tratará de superar essa posição. A gênese da alienação política será detectada no seio da sociedade civil, nas relações materiais fundadas na propriedade privada.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus; São Paulo : Boitempo, 2005. PP. 11-26 (Apresentação de Rubens Enderle).

e) CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL – Introdução

Como texto introdutório à leitura da Crítica da Filosofia do direito de Hegel, optei por não resumir a Apresentação feita por Rubens Enderle, tendo em vista ser todo o texto rico em destaques, o que me levaria a repetir incontáveis citações. De forma análoga, a própria Crítica é igualmente permeada de um sem número de teses, razão pela qual optei por enumerar alguns pontos considerados, por mim, como relevantes na leitura do segundo texto em questão:
1. Divisor de águas na obra marxiana, a Crítica marca a transição da fase juvenil para a fase adulta de Marx; é a consolidação dos pressupostos que irão nortear a produção do seu pensamento até a sua maturidade;
2. Marx repensa o papel da teoria crítica, estabelecendo que esta não se completa apenas no campo teórico da filosofia da religião e da ciência, mas tem um indispensável campo prático na política;
3. Por um lado, visava ir além do trabalho teórico da crítica da religião de Feuerbach; por outro, visava superar os fundamentos estabelecidos por Hegel para o Estado alemão;
4. Hegel elaborou uma teoria que se tornou a ideologia dominante na Alemanha da primeira metade do século XIX, tornando-a a doutrina oficial do Estado prussiano; este Estado era retrógrado, conservador e atrasado;
5. A crítica construída por Marx não visava só a Hegel, mas também aos seus críticos, afirmando que uma crítica realmente útil não pode se situar somente no plano do discurso, mas transformar-se na prática, atingindo as massas e se confirmando como força social capaz de subverter a estrutura vigente;
6. Marx afirma que a filosofia alemã de até então comete o erro de “descer do céu para a terra”, ou seja, privilegia a análise daquilo que os homens dizem, imaginam e pensam para a partir daí compreender o homem de carne e osso.
f) CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA (pontos mais importantes)

1. As relações jurídicas (...) não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela designação de sociedade civil; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política (Obs.: neste parágrafo, Marx mostrará o que a ruptura com a concepção hegeliana do Estado representará para o desenvolvimento do seu pensamento).
2. Na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social.
3. Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si.
4. Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter.
5. A humanidade só levanta os problemas que ela é capaz de resolver.
6. Os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁTICA:
MARX, Karl. Prefácio à Crítica da Economia Política. Tradução de Maurice Husson.
g) HISTÓRIA ESSENCIAL DA FILOSOFIA

Paulo Ghiraldelli Jr.
Volume 4
Resumos

Introdução
1. A história nada é senão o espírito se desenvolvendo e chegando a graus de reconhecimento de si mesmo.
2. Em filósofos como Hegel, a história é logicizada e a lógica é historicizada.
Razão Iluminista e Razão Romântica
1. O Iluminismo assumiu a razão como um elemento finito.
2. O que se opõe ao noumenon é o phenomenon, o que aparece, o que é por meio dos sentidos (primeira nota de rodapé).
3. Hegel avaliou que o sujeito kantiano carecia de uma imersão na história. [Para Hegel], teria faltado a Kant a percepção de que a maquinaria do sujeito não funciona como uma fábrica em que a matéria-prima entra, é moldada e, então, sai para a venda já empacotada como conhecimento.
Hegel e o “mundo arrumado”
1. Hegel escreveu um dos mais importantes livros de filosofia de todos os tempos: A Fenomenologia do Espírito. Na Fenomenologia, o termo sujeito, ou o eu, é tratado de uma maneira técnica específica, como consciência – e isso deve estar presente para se compreender Hegel.
2. O absoluto está no final do processo. Uma vez atingido, não haverá nenhuma necessidade de se ir adiante. A Fenomenologia do espírito expõe o caminho para o Absoluto.
3. A “dialética do senhor e do escravo” termina em frustração porque o senhor, ao fazer o escravo seu objeto, parece perder o que precisa para continuar a se afirmar.
4. Hegel não vê a liberdade como a possibilidade de se fazer o que se quer. A liberdade é a liberdade da consciência, do espírito. E o espírito é mais livre à medida que ganha alto grau de conhecimento de si mesmo, tendo atravessado as suas figuras, ou seja, todos os seus estágios de consciência-de-si.
5. Para o espírito, que nada é senão o pensamento, a maior liberdade é a liberdade de amplitude de pensamento.
6. O dualismo entre matéria e espírito é uma ilusão. Só há o espiritual como substancia do mundo.
7. O que atrapalha os seres humanos individuais é eles não se darem conta de que seus espíritos individuais e particulares compartilham de uma razão universal, comum a todos.
8. Tudo é da ordem do espírito à medida que tudo é real e racional ao mesmo tempo.
9. O pássaro mascote da deusa grega Athena (Minerava, para os romanos), a coruja, é tomada por Hegel como sendo a filosofia, na bela frase “a coruja de Minerva só levanta vôo ao entardecer”. O que ele quer dizer é [que] só depois que toda a história se desenvolve, quando o espírito se reconhece como sendo ele próprio o mundo, é que é possível para a filosofia aparecer.
10. A filosofia é a mais alta forma de descrição que o espírito tem para expor a consciência de si mesmo.
Marx e Schopenhauer
1. Schopenhauer (1788-1860) e Marx (1818-1883) criaram suas filosofias no interior de um período em que havia bastante espaço para desconfiar do otimismo de Hegel. Marx foi mais que um leitor de Hegel, ele foi efetivamente um hegeliano.
2. Marx foi um filósofo altamente capaz de propor uma revisão séria de Hegel, dando ao nome dessa revisão o termo “inversão”. Em vez de confiar no espírito como responsável pelo mundo, buscou encontrar um equivalente materialista para tal entidade, e o que Marx apontou como caracterizando cada grande época da história foram os modos de produção. Ele quis ver a história a partir da relação do homem com a necessidade de organizar o trabalho.
3. Schopenhauer escolheu um princípio propulsor diferente, talvez até mesmo oposto: a vontade.
4. Para Marx, a filosofia seria apenas uma manifestação mental dos homens.
5. Schopenhauer destronou a razão e, colocando no seu lugar a vontade, tirou da história hegeliana suas justificativas.
6. Marx foi a resposta otimista a Hegel. Schopenhauer foi a resposta pessimista. Marx viu os modos de produção se substituindo segundo um trajeto que não desmentia a história de Hegel.
7. Schopenhauer e Marx tiveram uma atitude em comum: ambos quiseram encontrar uma condição de celebração da vida ética. Marx acreditou que, para se ter uma vida ética, seria necessário eliminar da visa social o que ele chamou de ideologia (falsa consciência).
Vontade e corpo
1. Uma das principais transformações que [Schopenhauer] fez foi a de tratar os fenômenos como representações do sujeito, e tomar a coisa em si como um elemento metafísico determinado: a Vontade.
2. Em O mundo como vontade e representação, Schopenhauer assume que os fenômenos são dados ao sujeito por meio de sua atividade de representação.
3. O em si é a vontade. A essência do que é representado, do que é o fenômeno, é a vontade. O homem não pode fazer a vontade que, enfim, é a substância do mundo, deixar de agir.
Marx e a Ideologia
1. Marx trouxe para a filosofia uma versão transformada da teoria dos Ídolos de Bacon e da “ilusão necessária” das idéias da razão de Kant. Não inventou a palavra ideologia, mas criou sua noção moderna.
2. No capitalismo, o homem é alienado do problema do seu trabalho, e isso o afasta de si mesmo e dos outros homens à medida que seu corpo, seu espírito, seus colegas lhe são afastados.
3. A relação entre os homens produtores é nada mais nada menos que uma relação social entre produtores.
4. Fetichismo da mercadoria quer dizer, em outras palavras, que cada produto do trabalho humano é fetichizado, ganha vida e se põe diante do seu produtor. É o exemplo mais universal e simples pelo qual o capitalismo esconde as relações sociais.
5. Á medida que o capitalismo cria tecnologias que ampliam a segmentação da produção, mais e mais cada homem se desconecta do que faz na vida cotidiana. Ele não se reconhece como um trabalhador que produz algo. A mercadoria adquire identidade e cria-se uma ilusão necessária, ou seja, uma ideologia.
6. No capitalismo, o trabalho e as relações entre produtores, produtos e demais elementos são escamoteados. Este é o centro da ideologia capitalista, da falsa consciência, criada no capitalismo a respeito de como ele se dá e se transforma.
7. Marx vê a alienação como uma moeda que tem em uma face o fetichismo da mercadoria e na outra a reificação [coisificação] do trabalhador. Em certa medida, é a isto que Marx chama de ideologia: uma ilusão necessária. Trata-se de uma ilusão necessária que não é produto da própria razão enquanto elemento da mente humana, mas uma ilusão inerente à estrutura da realidade enquanto essa realidade é das relações capitalistas de produção.
A filosofia da história
1. Charles Darwin derrubou o muro entre os bípedes sem penas e os seres brutos, unindo todos os habitantes da Terra em uma só família, para além do que o Evangelho judaico-cristão havia feito.
2. Marx interpretou a história para poder esboçar uma teoria das revoluções e explicar as possibilidades de êxito político de forças sociais de seu tempo.
3. Comte estabeleceu uma filosofia da história que tinha como objetivo claro substituir a própria história.
4. Marx explicou sua filosofia da história no célebre Introdução à crítica da economia política, de 1859.
5. Neste livro, Marx divide a vida social em duas instâncias, que ele chama de estrutura e superestrutura. Na primeira, ele coloca as forças produtivas, que são a terra, as máquinas, as indústrias, a ciência e a tecnologia. A segunda, ele reserva para as relações de produção, que são as leis, as instituições políticas, a religião e as doutrinas várias sobre diversos assuntos, inclusive a filosofia.
6. Marx elaborou uma filosofia da história bastante dependente do modelo gerado pelas convulsões modernas, as chamadas revoluções burguesas. Esse movimento ele descreveu por meio da metáfora da toupeira. A revolução é a toupeira que cava às escondidas e bota seu focinho para fora no lugar em que se menos espera.
7. Nietzsche explicou sua filosofia da história em vários de seus livros e, de um modo mais organizado, no Genealogia da moral, de 1887. Para ele, o fio condutor da dinâmica histórica é o desenvolvimento do niilismo, ou seja, o continuo descrédito de todos os valores (ver pg. 44).
8. Em Auguste Comte, sua filosofia da história é claramente antropológica. Sua visão ficou conhecida como lei dos três estados. Segundo ele, a humanidade passa por três estados: a fase teológica, a metafísica e a científica. A garantia do futuro sem crise era o seu objetivo máximo.
Nietzsche e o fim da filosofia moderna
1. Indo ao berço da civilização ocidental, Nietzsche não poderia encontrar outros que não os gregos. Ele os investigou com cuidado e anunciou os resultados dessa pesquisa como a sua grande descoberta. Estava ali, na cultura grega, a fenda da qual teria brotado o odor horrível de toda a cultura da decadência.
2. Nietzsche não demorou em perceber que se ele quisesse entender a decadência representada pelo homem moderno e, de certa forma, por ele próprio, ele teria necessariamente de compreender Sócrates. O “pai da filosofia” parecia ser o grande sintoma dessa doença que acometeu a Grécia.
3. Sócrates priorizou a investigação moral, desarticulou-a do plano cósmico e a amarrou ao que veio a ser conhecido como a sua marca, o intelectualismo. O que passou para a história como o intelectualismo socrático dizia que as ações que vemos como causadas por uma “fraqueza da vontade” não seriam frutos de outra coisa senão de opções conscientes.
4. Na avaliação de Nietzsche, Sócrates era ladino e se aproveitou do gosto dos gregos pelos jogos, nas praças esportivas e ginásios, e ali seduzia os incautos. Sócrates era adepto da autopenitência, chegando a festejar a hora da sua morte. E todos os que o seguiram no Ocidente continuaram esse percurso de confiança na razão e de ódio aos instintos e à vida, portanto, de cultivo da doença e do cansaço da vida.
5. Nietzsche viu a busca pela verdade como a perversão do Ocidente. Seu propósito era a destruição do maior legado de Platão ao Ocidente: a metafísica. Sufocar o socrático Descartes e o não menos socrático Kant sob os escombros do sujeito era tudo que Nietzsche mais queria.
6. Nietzsche tomou a linguagem como seu objeto. A linguagem nada seria senão uma prática social.
7. Para ele, os fracos inventaram a idéia de liberdade. Ao lado da idéia de liberdade, os fracos criaram também a idéia de justiça.
8. Nietzsche diz que a própria linguagem contém os elementos necessários para colaborar com a tese do fraco. Ela, a linguagem, é dotada de sujeito, e imaginamos que a ação não pode ser desempenhada se não houver um ponto fixo no qual ela tem de estar agarrada; e esse ponto é o sujeito.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
GHIRALDELLI Júnior, Paulo. História Essencial da Filosofia. – São Paulo : Universo dos Livros, 2010. – PP. 10-57.

h) A IDEOLOGIA ALEMÃ

Prefácio: Marcelo Backes

As onze “Teses sobre Feuerbach” são parte fundamental da crítica de Marx a Feuerbach. Respaldado pelo combate à religião oficial levado a cabo por Feuerbach nas obras A essência do cristianismo (1841) e Fundamentos para a filosofia do futuro (1843), que já tocavam o regime político vigente de viés e defendiam abertamente o ateísmo adotando uma postura materialista, Marx pôde dar o passo decisivo adiante, indo bem além do “humanismo naturista” de Feuerbach, denunciando que o “homem natural é o conceito abstrato de Feuerbach, o pedestal sobre o qual este constrói seu idealismo.
Em A ideologia alemã os autores criticam Feuerbach pelo fato de este não conseguir ver as raízes societárias da consciência religiosa e se limitar a uma antropologia que não é capaz de entender a “essência humana” como o “conjunto das relações sociais”.
Feuerbach observa o mundo em sua imutabilidade sem buscar transformá-lo, conforme fica claro na 11ª tese de Marx. Grosso modo, a síntese entre o idealismo hegeliano e o materialismo feuerbachiano dá a dialética materialista de Marx e Engels.
Vale ressaltar que havia autores que já questionavam tangencialmente tudo aquilo que Marx e Engels viriam a caracterizar com o nome de ideologia alemã, como exemplo citamos Georg Christoph Lichtenberg, que por volta de 1770 escrevera em um de seus aforismos: “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, quer dizer, provavelmente o homem tenha criado Deus à sua imagem e semelhança”. Em outro aforismo, espécie de variação do anterior, Lichtenberg ataca o misticismo filosófico em palavras que poderiam vir da crítica dura de Marx: “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, diz a Bíblia; ao filósofos fazem exatamente o contrário, eles criam deus à sua imagem e semelhança”.
É característica de A ideologia alemã a estratégia de aniquilar a argumentação alheia repetindo as palavras que ela mesma usou. Em suma, A ideologia alemã combate o primado da ilusão metafísica sobre a realidade física, do mundo das idéias sobre o mundo concreto. Ela postula a unidade entre teoria e práxis e trabalha no sentido de dar caráter mundano – isto em terreno – à filosofia, e não apenas caráter filosófico ao mundo.
O objetivo de Marx e Ejngels é mostrar que o trânsito material – as relações materiais -, s sobretudo as relações entre os homens no processo de produção, são a base de todas as outras relações humanas.

Prólogo

A nova filosofia dos jovens hegelianos é recebida na Alemanha não apenas com horror e reverência, mas propagada também pelos heróis filósofos com a consciência festiva do perigo capaz de derrubar o mundo e da desconsideração mais criminosa.
Hegel representou a completude do idealismo positivo.

Capítulo I – Feuerbach

Conforme anunciam os ideólogos alemães, a Alemanha passou por uma transformação sem igual nos últimos anos. Foi uma revolução comparada à qual a Francesa foi um brinquedo de crianças.
Feuerbach é o único que pelo menos fez um progresso e cujas considerações podem ser abordadas de boa fé.
Marx demonstrava grande importância à história, como podemos deduzir de suas palavras: “enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionam mutuamente.
A crítica alemã cresceu sobre o chão de um único e determinado sistema filosófico, o hegeliano. Toda a crítica filosófica alemã se limita à crítica das noções religiosas. O império da religião foi estabelecido na condição de pressuposto.
Os jovens hegelianos são os maiores conservadores.
O primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos. Eles mesmos começam a si diferenciar dos animais quando começam a produzir seus víveres.
As relações entre diferentes nações dependem de como cada uma delas desenvolveu suas forças de produção, a divisão do trabalho e o intercâmbio interno.
A primeira forma de propriedade é a propriedade tribal; a segunda, a propriedade estatal ou comunitária (entre os povos bárbaros conquistadores a própria guerra é uma forma de intercâmbio. Na Itália, devido à concentração de terras e à transformação das mesmas em pastagens de gado, a população livre quase havia desaparecido, os próprios escravos voltavam a morrer sempre de novo e tinham de ser substituídos por outros); a terceira forma é a propriedade feudal ou estamental (a propriedade feudal, assim como a propriedade comunitária e tribal, mais uma vez se baseia em uma essência comunitária à qual não mais se confrontam os escravos, como no caso da antiga, mas sim os pequenos camponeses servis na condição de classe imediatamente produtora).

i) FRIEDRICH NIETZSCHE
Por Will Durant
Resumo

Darwin completou inconscientemente o trabalho dos enciclopedistas: eles haviam retirado a base teológica da moral moderna. Nesta batalha que chamamos de vida, precisamos não de bondade, mas de força, não de humildade, mas de orgulho, não de altruísmo, mas de uma inteligência resoluta; que igualdade e democracia são contrárias à natureza da seleção e da sobrevivência; que os gênios, e não as massas, são o objetivo da evolução; que o poder, e não a “justiça”, é o árbitro de todas as diferenças e de todos os destinos. – Era o que Friedrich Nietzsche achava.
O crescente vigor militar e industrial daquela nova Alemanha precisava de uma voz; o arbitramento da guerra precisava de uma filosofia para justificá-la. O cristianismo não iria justificá-la mas o darwinismo poderia fazê-lo. Com um pouco de audácia, a coisa poderia ser feita.
Nietzsche tinha essa audácia, e tornou-se a voz.
Em sua juventude, Nietzsche ficou piedoso e puritano, casto como uma estátua, até o fim: daí o seu ataque ao puritanismo e à piedade.
A morte precoce do pai deixou-o vítima das santas mulheres da casa, que o mimaram até quase incutirem nele a delicadeza e a sensibilidade feminina. Seus colegas de escola o chamavam de “o pequeno ministro”.
“Aquilo que eu não sou é, para mim, Deus e virtude”, disse.
De seus livros, “talvez o melhor deles, a título de uma introdução ao próprio Nietzsche, seja Além do Bem e do Mal, disse Will Durant em nota de rodapé.
Em pouco tempo o vinho, as mulheres e o fumo despertaram sua repugnância; reagiu com grande desprezo por toda a biergemütlichkeit de seu país e de sua época; quem bebesse cerveja e fumasse cachimbo era incapaz de uma percepção nítida ou de um pensamento sutil. “A mulher foi criada de uma costela do homem? – maravilhosa é a pobreza de minhas costelas!”.
Em 1870, Alemanha e França estavam em guerra.
Em Frankfurt, a caminho da frente de batalha, ele viu uma tropa de cavalaria passando com um magnífico tropel e exibição pela cidade; naquele exato momento, diz ele, veio a percepção, a visão da qual nasceria toda a sua filosofia. “Senti, pela primeira vez, que a mais forte e mais nobre Vontade de Viver não encontra expressão em uma miserável luta pela existência, mas numa Vontade de Guerra, uma Vontade de Poder, uma Vontade de Dominar”.
Em 1872, Nietzsche voltou a Basiléia, ainda fisicamente fraco, mas com um espírito ardendo de ambição e sem disposição para se desgastar na enfadonha tarefa de lecionar.
Duas de suas idéias características: a de que a moralidade, bem como a teologia, deveria ser reconstruída em termos da teoria da evolução; e que a função da vida é provocar “não a melhoria da maioria, que, examinada em termos individuais, mostra ser composta pelos mais inúteis dos tipos”, mas “a criação do gênio”, o desenvolvimento e a elevação de personalidades superiores.
Parsifal? Seria uma exaltação ao cristianismo, à piedade, ao amor espiritual, e a um mundo redimido por um “puro louco”, “o louco em Cristo”. Nietzsche afastou-se sem dizer palavra, e dali em diante nunca mais falou com Wagner. “É-me impossível reconhecer grandeza que não esteja unida a franqueza e sinceridade para consigo mesmo. No momento em que faço uma descoberta dessas, as realizações de um homem não valem absolutamente nada para mim”. Ele preferia Siegfried , o rebelde, a Parsifal , o santo, e não perdoava Wagner por passar a ver no cristianismo um valor moral e uma beleza compensando, de muito, seus defeitos teológicos. Em O Caso de Wagner, desfere golpes a torto e a direito, com uma fúria neurótica: “Richard Wagner (...), um romântico decrépito e desesperado, desabou subitamente diante da Santa Cruz”.
“Prometa”, disse ele à irmã, “que quando eu morrer, só meus amigos ficarão junto ao meu caixão, e não haverá uma multidão curiosa. Providencie para que nenhum padre ou qualquer outra pessoa fale falsidades à beira do meu túmulo, quando já não poderei me proteger; e deixe-me baixar à minha sepultura como um pagão honesto.”
“Ó grande estrela! Qual seria a tua felicidade, não fosse ela destinada àqueles para quem brilhas? (...) Vê! Estou cansado de minha sabedoria, como a abelha que coletou mel demais; preciso de mãos se estendendo para ela”. E assim ele escreveu Assim Falou Zaratustra (1883) e terminou-o naquele “abençoado momento em que Richard Wagner morria em Veneza”. Foi a sua magnífica resposta a Parsifal; mas o criador de Parsifal estava morto.
Zaratustra foi sua obra prima, e ele sabia disso. “Esta obra não tem igual”, escreveu mais tarde sobre ela. Entretanto, o editor recusou-se a imprimir a última parte, achava que não valia um tostão furado; assim, o autor teve de pagar a edição do próprio bolso. Foram vendidos quarenta exemplares do livro; sete foram dados de presente; só uma pessoa agradeceu; ninguém o elogiou. Nunca houve um homem tão só.
“Se houvesse Deuses, como poderia eu suportar não ser um Deus? Em conseqüência não há Deuses. Quem é mais ímpio do que eu, para que eu possa me deleitar com os seus pensamentos?”, escreveu em Zaratustra. Ainda em Zaratustra: “O que há de grandioso no homem é que ele é uma ponte, e não um objetivo: o que pode ser amado no homem é o fato de ele ser uma transição e uma destruição. Zaratustra se tornou, para Nietzsche, um Evangelho sobre o qual seus livros posteriores eram meramente comentários.
Gostava de escrever em meio aos pombos que se reúnem em grande número em torno dos leões de São Marcos – “esta Piazza San Marco é a minha melhor sala de trabalho”, dizia.
Foi a eloqüência dos profetas, de Amós a Jesus, que fez da visão de uma classe submissa uma ética quase universal; o “mundo” e a “carne” tornaram-se sinônimos do mal, e a pobreza uma prova de virtude. Essa avaliação foi levada ao paroxismo por Jesus: para ele, todo homem tinha o mesmo valor e também direitos iguais; dessa doutrina vieram a democracia, o utilitarismo e o socialismo; o progresso era, agora, definido em termos dessas filosofias plebéias, em termos de progressivas igualização e vulgarização, em termos de decadência e vida declinante (A.B.M.).
Por trás de toda essa “moralidade” está uma vontade secreta de poder. Até no amor à verdade existe o desejo de possuí-la. A humildade é a coloração protetora da vontade do poder.
Do Nietzsche psicólogo, temos: “A maior parte de nossa atividade intelectual acontece inconscientemente, sem ser percebida por nós; (...) o pensamento consciente (...) é o mais fraco.
Dizia: “Toda a moralidade da Europa está baseada nos valores que são úteis ao rebanho”. Os grandes indivíduos só aparecem em épocas de perigo, violência e implacável necessidade.
Uma filosofia é verdadeira ou falsa, dependendo de ser uma expressão e uma exaltação da vida em ascensão ou descenso.”A meta”, dizia, “não é a Humanidade, mas o super-homem”. Em Vontade de Potência escreveu: “Para que servem as máquinas, então, se todos os indivíduos só servem para mantê-las?”
Ao homem não deveria ser permitido amar e ser sábio ao mesmo tempo. Deveríamos, portanto, declarar nulos os votos dos amantes e tornar o amor um impedimento legal para o casamento. Os melhores só deveriam casar-se com os melhores; o amor deveria ficar para a ralé. O propósito do casamento não é apenas a reprodução; deveria ser, também, desenvolvimento. Em Zaratustra escreveu: “Casamento: assim eu chamo a vontade de duas pessoas criarem aquele que é mais do que os que o criaram”.
Para Nietzsche, o caminho para o super-homem deverá passar pela aristocracia. A democracia - “essa mania de contar narizes” – deve ser erradicada antes que seja tarde demais. O triunfo de Cristo foi o começo da democracia; “o primeiro cristão era, em seus instintos mais profundos, um rebelde contra tudo aquilo que era, em seus instintos mais profundos, um rebelde contra tudo aquilo que fosse privilegiado; viveu e lutou incansavelmente por “direitos iguais”; hoje em dia, ele teria sido mandado para a Sibéria”. Democracia significa deriva, a veneração da mediocridade e o ódio à excelência.
O problema da Alemanha é uma teimosia mental que paga pela sua solidez de caráter; falta à Alemanha as longas tradições de cultura que fizeram dos franceses o mais refinado e sutil de todos os povos da Europa.
Para Nietzsche, socialismo é inveja: “eles querem algo que nós temos”, escreveu. Achava que o escravo só é nobre quando se revolta. Seja como for, o escravo é mais nobre do que seus senhores modernos – a burguesia. É um sinal de inferioridade da cultura do século XIX o fato de o homem de dinheiro ser objeto de tanta adoração e inveja. “Só o homem de intelecto deveria ter propriedades. Olhem para “a loucura atual das nações, que desejam acima de tudo produzir o máximo possível e ser tão ricas quanto possível”. “Hoje em dia, a moralidade mercantil não passa, na realidade, de um refinamento da moralidade pirata - comprar no mercado mais barato de todos e vender no mercado mais caro de todos.”
Em O Anticristo escreveu que sempre e em toda parte, alguns serão líderes, e outros, seguidores; a maioria será compelida, e estará feliz, a trabalhar sob a direção intelectual de homens superiores. Disse que “mandar é mais difícil do que obedecer.” E que a sociedade ideal seria dividida em três classes: produtores, funcionários públicos e governantes.
Ainda no que se refere à aristocracia, dizia que nada pode contaminar e enfraquecer tanto uma aristocracia quando o casamento com novos-ricos. Todo nascimento é o veredicto da natureza em relação a um casamento; e o homem perfeito só chega depois de gerações de seleção e preparação; “os ancestrais de um homem pagaram o preço daquilo que ele é.”
Em Ecce Homo escreveu que “aquele que souber respirar no ar de meus escritos estará consciente de que se trata do ar das alturas, que é estimulante. O homem deve ser feito para ele; caso contrário, é provável que o mate.”
De todos os livros de Nietzsche, Zaratustra é o mais protegido contra a crítica, em parte por ser obscuro, e em parte porque seus inexpugnáveis méritos reduzem o valor de qualquer defeito encontrado.
Quanto ao sistema ético de Além do Bem e do Mal, disse que a maioria dos códigos morais é imposta de cima, e não de baixo. E a massa elogia e condena pela imitação do prestígio.
Nietzsche não reconhece o lugar e o valor dos instintos sociais. Repelido em sua busca do amor, ele se voltou contra a mulher com uma amargura indigna de um filósofo e anormal em um homem. Entretanto, mais verdadeiras em relação a ele do que ao Jesus ao qual ele as dirigiu, são as seguintes palavras suas: “Ele morreu cedo demais; ele próprio teria revogado a sua doutrina se tivesse atingido uma idade mais madura; nobre bastante para revogar, ele era.”
Por fim, Nietzsche tem sido refutado por todo aspirante à respeitabilidade; e, no entanto, permanece como um marco no pensamento moderno e um pico de montanha na prosa alemã. Não há dúvida de foi culpado de um pequeno exagero quando predisse que o futuro iria dividir o passado em “Antes de Nietzsche” e “Depois de Nietzsche”, mas conseguiu realmente fazer um saudável levantamento crítico de instituições e opiniões que durante séculos tinham sido considerados como perfeitamente naturais. (...) Abriu uma nova vista para o drama e a filosofia gregas; mostrou as sementes da decadência romântica na música de Wagner; analisou a nossa natureza humana com uma sutileza tão afiada quanto o bisturi de um cirurgião; desnudou certas raízes ocultas da moralidade como nenhum outro pensador moderno havia feito, embora, naturalmente, os pontos essenciais da ética de Nietzsche se encontrem em Platão, Maquiavel, Hobbes, La Rochefoucauld e até mesmo no Vautrin de O Pai Gaiot, de Balzac; introduziu no domínio da ética um valor até então praticamente desconhecido – ou seja, a aristocracia; forçou uma reflexão honesta sobre as implicações éticas do darwinismo; escreveu o maior poema em prosa da literatura de seu século e, acima de tudo, concebeu o homem como algo que o homem deve ultrapassar.
“Talvez eu saiba, melhor do que ninguém, por que o homem é o único animal que ri: ele, e só ele, sofre de uma maneira tão excruciante, que foi obrigado a inventar o riso”, escreveu em A Vontade do Poder. A doença e uma crescente cegueira foram o lado fisiológico de seu colapso. Ele começou a dar lugar a paranóicas manias de grandeza e perseguição.
Morreu em 1900. Raramente um homem pagou um preço tão alto pelo gênio.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
DURANT, Will. A História da Filosofia. Capítulo IX. In: Friedrich Nietzsche. Coleção Os Pensadores. Editora Nova Cultural. – São Paulo, 1996. Pp-371-410.

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