terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Filosofia Social

SECULARIZAÇÃO E DESENCANTAMENTO DO MUNDO


Rinaldo de França Lima[1]


O presente trabalho tem por finalidade dissertar sobre o conceito de secularização e desencantamento do mundo, a partir do ensaio “Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido”, de autoria de Antônio Flávio Pierucci, pesquisador e estudioso sobre religião no Brasil. Trata-se de uma publicação eletrônica, resgatada da Revista Brasileira de Ciências Sociais, datado de 1998. Houve, também, a participação neste trabalho do artigo elaborado por Darli Alves de Souza, O Desencantamento do Mundo em 2006. Souza é doutor em Ciências da Religião pela PUC/SP.
Pierucci procura rastrear toda a trajetória da construção do conceito de “Desencantamento do Mundo”, de forma cronológica, ao longo de toda a obra produzida por Weber. Para Pierucci, é a produção intelectual weberiana mais importante para o entendimento da modernidade. Ao final de seu meticuloso trabalho, Pierucci descobre que havia aberto um caminho para uma nova possível investigação para um “novo encantamento do mundo”, como bem o manifestam suas próprias palavras, segundo as quais defende “a necessidade inadiável de reabrirmos hoje no Brasil, entre os sociólogos da religião, a discussão conceitual do problema da secularização e argüir da utilidade de nos enfrentarmos de novo e seriamente como os velhos significados com os quais a coisa se pôs de pé, nos quais se levantou a questão. São referências que devem ser revalorizadas nos dias de hoje. Na América Latina principalmente. E o Cone Sul não me deixa mentir” (PIERUCCI, 1998, p. 2).
Ao todo são dezessete passos meticulosamente contados e comentados com singular maestria por Pierucci acerca do sintagma, no ensaio Secularização em Max Weber – Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido.
Logo de início, Pierucci vai mostrar que é uma postura equivocada o fato de que quando se trata do estudo de Weber, achar-se que se trata estritamente de sociologia da religião. Para Pierucci, a reflexão weberiana não está circunscrita neste universo, muito embora a contribuição de seu trabalho nessa área seja inegavelmente necessária. Entretanto, não se pode circunscrevê-lo no universo da sociologia da religião pelo simples fato de que àquela época não existia ainda essa área do conhecimento, ou melhor, a sociologia ainda estava se consolidando enquanto ciência social. Além disso, argumenta Pierucci, ninguém poderá dizer que é conhecedor da sociologia de Weber se não passar por sua sociologia da religião. A reflexão sobre o “desencantamento do mundo” não é meramente um estudo sobre religião ou religiões, e sim um estudo, uma análise exaustiva de um conceito de entendimento da sociedade ocidental e de maneira mais específica da modernidade.
O sintagma “desencantamento do mundo” teve sua origem, ou pelo menos serviu de inspiração para Weber, a partir das reflexões de um filósofo alemão chamado Friedrich Schiller (1750-1805). O termo desencantamento vem sendo usado com diferentes conotações, confundindo-se com desencanto e com um estado psicológico de desilusão em relação ao mundo, o que não corresponde aos fatos. Pierucci argumenta acerca de apenas dois sentidos bastante específicos para o desencantamento do mundo e afirma ainda que, nas 17 passagens onde a expressão é usada textualmente por Weber, este faz questão de esclarecer o significado que está atribuindo ao termo. Em resumo, seja pela interpretação religiosa, seja pela perspectiva científica, o desencantamento está intimamente ligado à desmagificação. Dito com outras palavras, o desentancamento do mundo é um processo histórico e se refere à adoção de éticas reguladoras afastando o caráter mágico atribuído ao mundo. O conceito aparece pela primeira vez em Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva, pouco antes de 1913 e é nos adendos de A Ética protestante e o espírito do capitalismo, cuja segunda versão foi editada em 1920, que se fez presente pela última. Em A ciência como vocação, o termo aparece literalmente em seis passagens diferentes.
Diz Pierucci que é no ensaio Consideração Intermediária, onde Weber mostra-se “bastante incisivo ao afirmar que a intelectualização científica é fator decisivo para o desencantamento do mundo, uma vez que obriga a religião a abandonar sua pretensão de propor o racional”, conforme Caroline Jaques Cubas. Das 17 vezes que o conceito é empregado, 11 delas tratam de sua significação literal, ou seja, do desencantamento enquanto desmagificação da religião.
Segundo Pierucci, diz Cubas, “nesse processo de racionalização, a valorização de um deus que regula, pune, conduz e recompensa está intimamente ligada ao desenvolvimento de laços éticos que vão ligar o indivíduo a um mundo ordenado por obrigações e responsabilidades, clamando pela manutenção de uma conduta regular fundada na racionalidade normativa.”
Nos adendos de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o desencantamento do mundo é explicitado enquanto um processo histórico empiricamente perceptível. Ao longo de seu trabalho, Antônio Flávio Pierucci vai dissertando sobre o conceito de desencantamento do mundo, argumentando de forma cada vez mais contundente sobre seus usos possíveis e coerentes, de conformidade com aquilo que foi proposto pelo próprio Weber. Algumas vezes falando do desencantamento religioso, outras do desencantamento científico, mas sempre procurando manter-se fiel ao pensamento weberiano, apresentando não apenas uma discussão conceitual, mas principalmente um amplo panorama sobre os temas mais recorrentes da obra weberiana, entre eles, o processo de racionalização do Ocidente.
Cabe ressaltar que “desencantamento do mundo” é algo essencialmente weberiano, entretanto o termo não foi cunhado por Weber, nem adotado por Schiller, mas adaptado por ele, Weber, a partir de um sintagma similar, diz Pierucci. O termo cunhado por Schiller seria “desencanto do mundo”. Portanto, aqui se encontra o nascedouro daquilo que para Pierucci é quase uma obsessão: entender o desenvolvimento e a evolução de um conceito importantíssimo para a compreensão do mundo ocidental dos últimos séculos.
Pierucci enfatiza que a discussão do conceito weberiano de secularização necessariamente invade o terreno da conceituação de legitimidade, do tratamento teórico dos problemas de legitimação da autoridade, problemas que todos sabemos recorrentes, permanentes, no Estado moderno. No Brasil, ele lastima que a abordagem da secularização por muitos sociólogos da religião simplesmente não satisfaz. Ou seja, os termos não andam bem colocados. Para ele, estão em alta as adesões religiosas e a conversão tem estado em evidência, o que foi se tornando fora do foco dos sociólogos “a dimensão verdadeiramente hard da secularização, aquela que se instala na esfera da normalidade jurídico-política”. Hoje, tanto no Brasil, como no Cone Sul e em toda a América Latina, na América do Norte, na Ásia e Europa, a secularização, como diz Pierucci, “já era” (PIERUCCI, 1998, p. 4). Daí o seu apelo para que essa retomada seja feita, como dito linhas acima, e que leve a uma nova e possível investigação para um “novo encantamento do mundo”.
Pierucci constata que nas três últimas décadas do século XX, as religiões têm-se revitalizado e se expandido e multiplicado a olhos vistos. Constata também que é um fenômeno quase palpável em escala mundial “o novo e heterogêneo despertar religioso”, que estaria “a fermentar não só o Terceiro, mas também e principalmente o Primeiro Mundo, não sem registrar, nos anos 80, vigorosa irrupção no Leste europeu, o qual, andam dizendo, ter-se-ia tornado pós-comunista em larga medida por causa do fator religioso” (PIERUCCI, 1998, p. 5).
A primeira vez em que a expressão “desencantamento do mundo” (Entzauberung der Welt) se dá é num artigo publicado na revista Logos, em setembro de 1913, segundo Pierucci. No texto, Weber desenvolve vários elementos da Sociologia no contexto alemão, no período compreendido entre 1913-1914, que segundo Pierucci é um momento importante do debate metodológico da Sociologia, que, àquela altura, ainda não estava totalmente firmada, conforme dito linhas acima.
É importante ressaltar os dados de Pierucci acerca do seu trabalho. Nove vezes o termo desencantamento é empregado como desmagificação; quatro vezes como perda de sentido e outras quatro como desmagificação mais perda de sentido. Demonstra o autor que há dois sentidos do sintagma. Primeiro, desencantamento do mundo pela religião; segundo, desencantamento pela ciência. Para Pierucci, há uma clara passagem da magia para a religião que é, de certa maneira, pano de fundo para entendimento do desencantamento do mundo.
Dando continuidade à tarefa de dissecar o mais importante sintagma weberiano, Pierucci destaca três aspectos importantes desses passos, quais sejam: primeiro, “a relação de complementação entre o desencantamento do mundo e a ascese intramundana do protestantismo ascético; desencantamento do mundo no plano das idéias, ou seja, desencantamento das imagens do mundo; desencantamento como moralização religiosa ou eticização da conduta religiosa” (SOUZA, 2006).
No primeiro aspecto acima mencionado, Pierucci argumenta que a religião é algo que se vive no extra cotidiano, mas que se complementa no tempo e espaço cotidiano, ou seja, é algo que não se pode separar. Complementando, eleva-se o crente a uma busca constante, a um aperfeiçoamento diário, quer nos negócios, quer na sua vida particular para atingir a graça.
No segundo aspecto, há que se ter em mente que idéias religiosas são as idéias de como se vê o mundo, ou seja, as imagens que se tem dele. Para Weber, “...são aqueles pontos de vista supra pessoais que articulam os aspectos fundamentais da relação do homem com o mundo. Em sentido mais amplo, elas são imagens de mundo, mais precisamente, elas devem sua existência à necessidade, e à busca intelectual de uma narrativa coerente do mundo e, como tal, são criadas predominantemente por grupos religiosos, profetas e intelectuais”. A racionalização e a intelectualização que permitiriam essa maneira de ver o mundo.
É importante destacar que desencantamento do mundo não significa uma perda para a religião. Também não é perder religião, no sentido de sentimento religioso, mas sim, moralizar a própria religião. Com uma religião racionalizada. É importante ter no mundo uma atitude condizente com as práticas religiosas.
Para Weber, desencantamento do mundo é a desmagificação da busca da salvação. Pierucci apresenta esse elemento como “a outra face do processo de moralização da prática religiosa, um processo histórico-religioso tipicamente ocidental e de sérias conseqüências para o viver humano” (SOUZA, 2006). Pierucci separa racionalização religiosa de racionalização técnico-científica. Weber, com a expressão Entzauberung der welt refere-se “ao processo de racionalização da religião, o qual tem conseqüências na conduta de vida de modo ético-ascético, isto é, nada mais e nada menos que a religião determinando a conduta de vida racionalizada na prática, ou seja, no cotidiano das pessoas” (SOUZA,2006). Para Pierucci, a religião aparelha a realidade intramundana de sentido, principalmente a partir de profecias racionais. O processo de desencantamento é a saída da magia para a profecia e que determina a conduta de vida plena de sentido, isto porque é a vontade de Deus, seja ela concreta ou abstrata.

1. Conclusão
Três tópicos merecem ser abordados com o fim de melhor esclarecer os elementos mais importantes ligados ao tema tratado: primeiro, o desencantamento do mundo como eticização religiosa em seu ponto máximo. Pode-se dizer que o protestantismo praticante conseguiu unir uma rejeição religiosa do mundo com uma ascese intramundana comandada pela ética protestante, amparada no “dever ser”, obedecendo às vontades de Deus através de profecia, tudo isso traduzido numa vida racional e santificada ao mesmo tempo; segundo, o desencantamento do mundo como não sendo puramente secularização ou racionalização do mundo. Ou seja, não se pode confundir desencantamento do mundo com processo de secularização do mundo. Secularização passa por outros caminhos, talvez mais bem técnicos ou científicos. Secularização implica afastamento da religião, fato que não se constata em Max Weber ao cunhar o termo em estudo; por fim, o protestantismo ascético como processo final do desencantamento do mundo. Fica claro que o desencantamento é religioso e não científico. Não tem nada a ver com desilusão, desalento em relação à vida. É desmagificação do mundo através da racionalização da religião. Podemos inferir que o termo “desencantamento do mundo” apresenta-se com dois sentidos: o primeiro é o sentido religioso de desencantar o mundo através da religião. O segundo, refere-se ao fato de que a ciência não consegue dar sentido ao todo do mundo, mas a cada parte. Tanto um sentido como o outro, são expostos ao longo das obras de Weber de forma simultânea, permanecendo o mesmo do princípio do afim.
Por fim, a chave de ouro para fechamento da questão “desencantamento do mundo” vem a ser justamente o “reencantamento do mundo”. E aqui entra a proposta de Pierucci. Para ele, este reencantamento passa, necessariamente, por uma outra esfera cultural da vida, esfera esta que não é religiosa mas erótica. Ele irá dizer que se trata de uma esfera onde mora uma força irracional que é a força sexual que, segundo ele, talvez seja uma das principais forças necessárias para reencantar o mundo. Quer o autor dizer que, num mundo em que vivemos tão cheio de problemas de todas as espécies, tantas burocracias, tantas contradições, tanta irracionalidade, uma reflexão mais cautelosa de Max Weber traria mais subsídios para reencantar o mundo através dessa força irracional que move o ser humano, ou melhor, que é imanente ao ser humano.
Diante disso, uma reflexão cautelosa de Weber dará subsídios para se reencantar o mundo através da força mais irracional do ser humano. Mas o que isso significaria? Significa que aí há uma luta entre duas forças místicas, de um lado a mística supramundana, que transcende este mundo através da rejeição religiosa do mundo em uma conduta de vida ascética que só tem sentido se depositar esperança de salvação no outro mundo através de um Deus (PIERUCCI, 1998, p. 15), citado por Souza que conclui: “Esse ponto final do autor é profundamente instigante para pensar a religião. É óbvio que essa reflexão de Pierucci sobre a obra de Weber subverte muitas posturas religiosas e até mesmo a própria religião. Quando aqui se refere à religião, é importante ressaltar que são aquelas chamadas por Weber de religiões de salvação que, necessariamente, têm como característica o ato transcendente de sair deste mundo depositando sua fé, esperança e principalmente a plenitude da salvação no outro mundo.”

2. Referências
1. PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização em Max Weber: Da serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. São Paulo, 1998. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. Acesso em 24 nov. 2008.
2. SOUZA, Darli Alves de. O Desencantamento do Mundo. São Paulo, 2006. Disponível em: http://oficinadaescrita.files.wordpress.com. Acesso em 24 nov. 2008.
[1] Curso Filosofia, UFS, quarto período, 2008.

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