sábado, 2 de janeiro de 2010

Filosofia Medieval


A natureza do livre-arbítrio em Agostinho a partir da citação: “Se possível, explica-me agora a razão pela qual Deus concedeu ao homem o livre-arbítrio da vontade, já que, não o houvesse recebido, o homem certamente não teria podido pecar”.
Rinaldo de França Lima

Resumo: Este trabalho visa analisar a natureza do Livre-Arbítrio em Santo Agostinho de Hipona, a partir da citação: “Se possível, explica-me agora a razão pela qual Deus concedeu ao homem o livre-arbítrio da vontade, já que, não o houvesse recebido, o homem certamente não teria podido pecar”. Visa, também, tecer considerações sobre a origem do mal a partir das concepções de Santo Agostinho e, por fim, levantar algumas questões sobre a natureza do livre-arbítrio.
Palavras-chave: Livre-Arbítrio. Vontade. Deus. Pecado.
1. Introdução
Trata o presente trabalho sobre um dos principais pontos da extensa obra de Santo Agostinho, mais precisamente sobre algumas questões suscitadas a partir da análise de uma indagação feita por um amigo do Santo de Hipona em uma célebre “batalha dialética” entre os dois, indagação esta que pede uma explicação que justifique Deus ter concedido ao homem o Livre-Arbítrio da vontade, já que, casa não o tivesse dado, o homem não teria podido pecar.
Todos nós, seres humanos, somos o resultado do meio em que vivemos, da época em que vivemos e das experiências que vivenciamos no decorrer de nossas vidas. Da mesma forma, também tudo o que criamos, que produzimos sofre a inevitável influência das somas das circunstâncias que determinam nossa existência. Com Santo Agostinho não poderia ser diferente no campo da filosofia. É possível que em alguns casos, a vivência de um filósofo produz um resultado contrário àquilo que ele viveu, e ainda que sirva para negar a validade daquilo que ele acreditou, ainda assim, ele não terá deixado de contribuir para o progresso do pensamento humano.
Já se disse que a filosofia é produto da angústia, e Santo Agostinho era um homem angustiado – o episódio do roubo das peras em sua adolescência, o atormentaria para o resto de sua vida. Na verdade, a sua inquietude de idéias é que foi o motivo maior para a sua conversão e também para a produção de sua prodigiosa obra filosófico-teológico-literária, sem contar a forte influência materna que sofrera.
Desta forma, com o intuito de apresentar minha modesta contribuição para o entendimento do pensamento de Santo Agostinho, é que a partir das próximas páginas lanço-me ao desafio de tecer meu trabalho sobre a natureza do livre-arbítrio na perspectiva agostiniana e, obviamente, expondo, também, o meu olhar.
2. Desenvolvimento
O livro II, que trata da existência de Deus, começa com a indagação de Evódio, sobre a qual passarei em seguida a dissertar sobre a natureza do livre-arbítrio em Santo Agostinho. Pergunta Evódio: “Se possível, explica-me agora a razão pela qual Deus concedeu ao homem o livre-arbítrio da vontade, já que, caso não o houvesse recebido, o homem certamente não teria podido pecar”.
Antes de entrar na resposta à questão proposta, necessário se faz uma contextualização da doutrina do Livre-Arbítrio. Esta se origina fundamentalmente da constante preocupação de Santo Agostinho com problemas práticos e complexos como o mal principalmente, a liberdade, a graça a qual chegou ao encontro pelo caminho da interioridade, e a predestinação.
Na obra em discussão, Santo Agostinho trava diálogos à maneira platônica com Evódio, um amigo seu, e esta obra tem como pano de fundo o problema da liberdade humana e da origem do mal moral, problema com o qual ele se preocupava desde sua adolescência. Agostinho não aceitava determinadas situações e sofria com a idéia de que Deus fosse a causa do pecado. E no Livre-Arbítrio deixa evidente que Deus não nos induz a cometer o mal, mas nos dá a liberdade de escolha entre fazer o bem e fazer o mal.
Agostinho foi profundamente impressionado pelo problema do mal. Foi também de certa forma prejudicado pela solução dualista fornecida pelos maniqueus, na medida em que lhe impedia o conhecimento do justo conceito de Deus e da possibilidade da vida moral. A solução deste problema por ele encontrada foi a sua libertação e a sua grande descoberta filosógico-teológico, e marca uma diferença fundamental entre o pensamento grego e o pensamento cristão. Antes de tudo, Agostinho nega a realidade metafísica do mal. O mal, para ele, não é ser, mas privação do ser, como a treva é a ausência da luz. Tal ausência é imprescindível em todo ser que não seja Deus. Resumindo a doutrina de Agostinho acerca do mal, podemos dizer que este é, fundamentalmente, a privação do bem. Este bem pode ser não devido ou devido a uma determinada natureza. Se esse bem é devido nasce o verdadeiro problema do mal. A solução do problema passa a ser estética para o mal físico, mora para o mal moral.
A grande questão milenar que faz os teólogos e mesmo os leigos perderem o sono é a seguinte: se Deus é onisciente e todo-poderoso, como relacionar tal proposição com a noção do livre-arbítrio e da existência do mal no mundo? Se Deus sabe com antecedência como os indivíduos se comportarão e permite que assim ajam, então ele permite que o mal exista. Neste caso, os homens não deveriam ser responsabilizados por seus atos, pois tais ações existiriam na mente de Deus muito antes da criação dos homens.
O argumento de Agostinho é o de que a sabedoria infinita de Deus e sua onisciência não possuem nenhuma influência em nosso livre-arbítrio. A responsabilidade pessoal governa a condição humana. Ainda assim, Deus nos guia, bastando para isso que nós o busquemos. Por esse motivo, podemos ser apenas parcialmente responsáveis quando praticamos o bem e assumimos toda a culpa quando fazemos o mal.
Voltando ao cerne da questão, ou seja, a natureza do livre-arbítrio, percebemos que o próprio tom do diálogo denota questionamentos que no mínimo sugerem dúvidas, o que em si já é um prenúncio de que contradições existem. Ora, se Deus nos concedeu a vontade livre para fazer o bem, por que desviamos essa vontade e fazemos o mal? Pergunta Evódio se foi um bem ou não o livre-arbítrio nos ter sido dado, argumentando que “se é incerto ela nos ter sido dada [...], tampouco é certo que seja um bem ela nos ter sido dada”. Continua Evódio: “Não é igualmente certo que seja Deus o doador”. E conclui: “A incerteza sobre a conveniência do dom torna incerta a origem, isto é, o fato de ser Aquele a quem não nos é permitido crer que conceda algo que não deveria ter concedido”.
Podemos começar dizendo que a natureza do livre-arbítrio é espiritual. Agostinho nos lembra (pg. 135) que “a natureza corpórea é de grau inferior à natureza espiritual”. Daí que, diz ele, “o espírito é um bem maior que o corpo”. Para Agostinho, ninguém pode viver com retidão sem o livre-arbítrio. “A vontade livre, segundo ele, é um bem e um dom de Deus, e que é preciso condenar aqueles que abusam desse bem, em vez de dizer que o doador não deveria tê-la dado a nós”.
Em seguida, Agostinho vai dizer que o livre-arbítrio não é o bem mais perfeito. E que “não somente os grandes bens, mas também os pequenos, só podem provir daquele por quem existem todos os bens, isto é, de Deus”. Para ele, Deus pôs à nossa disposição não somente grandes bens, mas também bens médios e bens inferiores. O livre arbítrio pode servir ora para o bem, ora para o mal. Daí mais um caráter controverso do livre arbítrio: a ambigüidade. Agostinho chega a admitir ser a livre vontade, apesar de não ser o melhor que Deus podia nos oferecer, melhor do que se não tivesse nos dado.
Para Agostinho, quando a vontade adere ao bem imutável, ou seja, a Deus, o homem possui vida feliz. Conta-nos que os bens desejados pelos pecadores não são maus. Também não é má a vontade livre do homem. O mal, para ele, “consiste na aversão da vontade ao bem imutável para se converter nos bens transitórios”.
Em seu capítulo 20, Livro 2, conclui Agostinho que o mal se origina da deficiência do livre arbítrio. Analisemos a questão. Destaco os pontos chaves dessa última parte do livro II, entretanto não vejo Agostinho fechar questão sobre a natureza do livre arbítrio. Por exemplo, quando pergunta se se pode acusar Deus como o autor do pecado, ele mesmo responde categoricamente “Não”, argumentando que “não se pode conhecer o que é simplesmente nada”, ou seja, não pode existir realidade alguma que não venha de Deus e, se o mal é a ausência total do bem, Deus não pode ser responsabilizado por ele. Segundo Agostinho, “a um ser ao qual for retirado completamente três elementos fundamentais – medida, número e ordem -, neste nada restará. Ao contrário, diz ele, “em toda parte onde se encontrarem esses três elementos, existe a perfeição plenamente realizada. De acordo com suas palavras, “se acontecesse a supressão total do bem, o que restaria não é um quase nada, mas sim um absoluto nada.”
Próximo à sua conclusão, ainda nos diz que não existe realidade alguma que não venha de Deus, e que, de onde pode proceder o movimento de aversão, que constitui o pecado, ele não vem de Deus.
Findo o capítulo, Agostinha mostra-se seguro sobre a origem do pecado, entretanto Evódio não se dá por convencido, combinando os dois retomarem a discussão em diálogo futuro.
Entretanto, a meu ver, algumas questões sobre o livre arbítrio precisam ser aqui colocadas, posto que se revestem de capital importância no que concerne à doutrina de Agostinho.
Se aceitarmos que o homem está numa situação de neutralidade, ou seja, podendo escolher livremente entre fazer o bem ou o mal, isso implica pelo menos em três ou quatro situações de clara contradição, senão vejamos: a) o homem tem pelo menos um mérito em sua salvação, pois afinal de contas a escolha foi dele, todavia esta conclusão entra em choque com a teoria da graça, segundo a qual o homem não tem qualquer mérito em sua salvação; b) o homem não está condenado ao inferno até o momento em que optar se deseja aceitar o Cristo ou não, só se tornando perdido a partir do momento em que renegar livremente o Evangelho. Se assim for, será melhor para ele que não lhe seja pregado evangelho algum. Podemos imaginar culturas diferentes, muitas delas que sequer têm conhecimento de tais religiões. Em tais situações, obviamente, ninguém estaria condenado a arder no inferno de Dante. Portanto, quando um homem desses tiver que se apresentar no Juízo Final, poderá argumentar que não pode ser condenado visto que não lhe foi pregado Evangelho algum. Por essa perspectiva, a pregação do Evangelho pode se tornar até um grande risco, pois poderá levar o homem para o caminho da perdição; c) caso a resposta seja que o homem não tem acesso aos Evangelhos, por exemplo, que é inimigo de Deus e que a sua natureza pecaminosa o leva a ser escravo do pecado e das paixões carnais, como entender que ele possa escolher livremente o bem e o evangelho se a Escritura diz que a tendência da carne é para o pecado? Estas são algumas questões que são levantadas diante da situação do homem frente ao bem e o mal.
Outra questão é: se existe o livre arbítrio, todos os homens são livres em suas vontades. Portanto, ninguém, nem mesmo Deus, pode forçá-los a fazer qualquer coisa que eles não queiram. Ora, se a verdade humana é livre então ela é inviolável. Então, como justificar situações como, por exemplo, diante do texto de Jonas, que mostra como o profeta fugiu da sua missão, mas Deus o levou a cumpri-la, mesmo contra sua vontade? Como falar de livre-arbítrio se em casos como estes e outros relatos bíblicos, o homem não fez a sua vontade, mas a vontade de Deus? Ora, se a vontade humana é livre, então, é inviolável, mas neste caso ela foi violada. Portanto, não é livre.
Mais outra questão se nos apresenta: e se ao homem é concedido o livre-arbítrio, qual o sentido de se orar por sua conversão? Se, como diz Agostinho, a decisão é do homem e totalmente livre da influência de Deus, se é ele que decide por si próprio, para que orar pedindo a sua conversão, uma vez que Deus não pode obrigá-lo a decidir-se? Afinal de contas, a decisão cabe ao homem e não a Deus.

3. Conclusão
O Deus, como concebemos, ou seja, cristão, ocidental, é descrito como perfeito e bom, onisciente e onipresente. Se tudo isso for verdadeiro, podemos imaginar que Deus não só quer eliminar o mal, como é capaz de fazê-lo. Mas, isso nos leva a indagar: então, por que existe o mal? Seria porque Deus não existe? Quem poderá responder tal questão? Só Deus!
Tentemos entender o argumento. Primeiramente, a que a palavra mal está se referindo? Regra geral, o termo é usado para significar atos ou motivos moralmente errados, que podemos descrever como mal moral. Aqui neste argumento está incluso o sofrimento que não decorre de situações não morais, como o causado por catástrofes como terremotos, secas, doenças em geral, o sofrimento dos animais em seus habitats, quando necessitam eliminar outros animais a fim de manter sua sobrevivência, etc.
Para que a existência do mal seja incompatível com a existência de Deus, devemos supor, ainda, que sendo Deus bom, Ele tem o desejo de eliminar o mal do mundo. Mas, se algum mal for realmente necessário, como por exemplo, as doenças, se não sentíssemos dor, como poderíamos aprender a lidar com ela? Nesses casos, a nossa suposição de que Deus teria que eliminar todo o mal não faria sentido.
Alguns teóricos dizem que algum mal é necessário para fazer do mundo um lugar bom e agradável de viver. Esses mesmos estudiosos poderiam argumentar que não poderíamos mensurar o que é bom se não pudéssemos comparar o bem com o mal.
São tantas as discussões a respeito do mal, tantas as contradições sobre o livre-arbítrio que, se tivéssemos de buscar tudo o que se escreveu e se pensou a respeito, incontáveis páginas seriam escritas. Todavia, limitei-me ao mínimo possível, visto que o espaço a mim concedido para o presente trabalho não contempla um volume maior de páginas.
Para encerrar a discussão sobre o mal, utilizo-me das palavras de Stephen Law em seu Guia Ilustrado Zahar Filosofia: “Uma teodicéia é uma argumentação que tenta justificar o mal, tornando-o compatível com a existência de um Deus onipotente, onisciente e bom. A abordagem do mal necessário é uma teodicéia, tal como a proposição de que ele resulta de nosso livre-arbítrio e a idéia de que é essencial para nosso crescimento moral e espiritual. Teodicéias precisam conseguir mostrar que este é o melhor dos mundos possível: que menos mal levaria à perda de um bem substancial”.
Finalmente, podemos dizer que o mal é causado pela maneira como exercemos o nosso livre-arbítrio. Deus no-lo concedeu como sendo algo muito bom. Entretanto nós, criaturas moralmente imperfeitas que somos, nem sempre o usamos para o bem e, por muitas vezes, o utilizamos para fazer o mal. Mas, como diz a argumentação de Agostinho, ainda é melhor ter o livre-arbítrio e causar o mal devido a decisões erradas do que não o ter.
Para Agostinho. A teodicéia acima descrita não justifica apenas o mal moral. Para ele, também o mal natural resulta do mal moral. O pecado original cometido por Adão e Eva levou à queda, que alterou a natureza e a vida dos homens para todo o sempre. Como conseqüências da queda sobrevieram a discórdia entre os homens, as dores do parto e todas as adversidades que devemos suportar para sobreviver. Todo o mal, seja ele natural ou moral, foi causado pelo livre-arbítrio do homem, disso está convencido Santo Agostinho. Entretanto, nosso livre-arbítrio não pode ser literalmente a causa do mal natural, e mesmo que fosse pareceria excessivamente injusto. Afinal, por que crianças e animais deveriam sofrer as causas de uma decisão tomada num passado remoto por duas pessoas? O livre-arbítrio pode ser um grande bem, entretanto isso não significa que nunca devamos influir nele. “Não apelamos para o valor do livre-arbítrio de um assassino para justificar nada fazer para detê-lo. Por que, então, Deus o faria? Alguns respondem que Deus teria de interferir tantas vezes para evitar o mal que causamos que isso solaparia a própria essência de nosso livre-arbítrio” (LAW : 2008, PG. 155).

4. Referências
AGOSTINHO, Santo. O Livre-Arbítrio. São Paulo. Paulus. 1995 (Patrística).
LAW, Stephen. Guia Ilustrado Zahar: Filosofia. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed. 2008.
MANNION, James. O livro completo da filosofia: entenda os conceitos básicos dos grandes pensadores: de Sócrates a Sartre – 5. Ed. – São Paulo : Madras, 2008.


Crítica de Santo Tomás de Aquino ao argumento ontológico de Santo Anselmo de Cantuária, levando-se em consideração as cinco provas da existência de Deus e o problema da verdade em Aquino.

1. PARTE I: Os principais pontos do argumento ontológico de Anselmo de Cantuária.

Étienne Gilson assim começa por definir o espírito de Anselmo de Cantuária: “...espírito de um vigor e de uma sutileza dialética raros. Nutrida do pensamento de santo Agostinho, sua obra apresenta no estado de implicação e de indicação várias idéias que se desenvolverão mais tarde e excede em todas as direções o argumento ontológico a que se parece praticamente reduzi-la” (Gilson, 2007, p. 291).
É ainda que assim se reporta a Cantuária: “Anselmo toma nitidamente consciência da atitude que adota no que concerne às relações entre a razão e a fé. O Monologium foi escrito especialmente a pedido de certos monges de Bec, que desejavam um modelo de meditação sobre a existência e a essência de Deus, em que tudo seria provado pela razão e em que absolutamente nada seria baseado na autoridade da Escritura (Gilson, 2007, p. 292).
Para Anselmo, duas fontes de conhecimento estão à disposição dos homens: a primeira é a razão; a segunda, a fé. A fé é para o homem, segundo ele, o dado de que este deve partir. E completa Gilson: “O fato que o homem deve compreender e a realidade que sua razão pode interpretar lhe são fornecidos pela revelação; não se compreende para crer, mas, ao contrário, crê-se para compreender” (Gilson, 2007, p. 291). Em uma palavra: a inteligência pressupõe a fé.
Diz ainda Gilson que “entre a fé e a visão beatífica a que todos aspiramos, há neste mundo um intermediário, que é a inteligência da fé. Compreender sua fé é aproximar-se da própria visão de Deus. A ordem a observar na busca da verdade é, pois, a seguinte: primeiro crer nos mistérios da fé antes de discuti-los pela razão; depois esforçar-se por compreender aquilo em que se crê. Não dar precedência à fé, como fazem os dialéticos, é presunção; não apelar em seguida para a razão, como nos proíbem seus adversários, é negligência” (Gilson, 2007, pg. 292).
Segundo Gilson, Santo Anselmo não recuou diante da tarefa de demonstrar a necessidade da Trindade e da Encarnação, tarefa que Santo Tomás de Aquino declara contraditória e impossível. Anselmo fez, portanto, com a técnica filosófica de que dispunha naquela época, o que Tomás de Aquino iria refazer no século XIII com uma técnica filosófica enriquecida pela descoberta da obra inteira de Aristóteles (Gilson, 2007, p. 293).
A parte mais fecunda e mais forte da obra de santo Anselmo consiste, segundo Gilson, “em suas demonstrações da existência de Deus. Inspiradas em Santo Agostinho, elas superam, porém, as provas agostinianas pela solidez e o rigor de sua construção dialética” (Gilson, 2007, 294).
Seu argumento ontológico e sobre o qual nos debruçaremos durante esta primeira parte é, literalmente: “Há um ser primeiro, superior a tudo o que existe, e é esse ser a que chamamos Deus”. Para ele, uma só hipótese permanece inteligível: a de que tudo o que existe, existem em virtude de uma só causa, e essa causa que existe por si é Deus. Anselmo está preocupado em fornecer provas tão manifestas quanto possível da existência de Deus, e que se impõem como que pó si mesmas ao assentimento de nosso espírito (Gilson, 2007, p. 296).
É importante neste ponto a interpretação de Étienne Gilson acerca do argumento ontológico de Anselmo. Diz-nos Gilson que Anselmo “apenas leva ao extremo esse caráter da prova, coroando as demonstrações precedentes com o argumento ontológico desenvolvido no Proslogium. As três provas anteriores são demasiado complicadas, ainda que demonstrativas; ele precisa de uma só prova, que baste a si mesma e da qual decorra, ao contrário, necessariamente, todo o resto”. E continua: “Essa prova parte da idéia de Deus que nos é fornecida pela fé e resulta, conforme o método de Anselmo, na inteligência desse dado da fé. Cremos que Deus existe e que ele é o ser tal que não se pode conceber um maior que ele”.
Em outras palavras, a tentativa de mostrar que é racional crer em Deus tem uma longa história. Santo Anselmo afirmou que podemos inferir que Deus existe da mera idéia de Deus, ou seja, apenas pensando sobre o que Deus é, podemos concluir que ele deve existir. Analisemos a sua silogística: primeira premissa, Deus é um ser tão grande que maior não pode ser concebido; segunda premissa, Deus pode ser concebido como mera idéia ou como realmente existindo; conclusão, existir é maior do que não existir, logo, Deus deve existir. Este é exatamente o argumento ontológico de Santo Anselmo de Cantuária. Entretanto, Gaunilo, um monge que viveu no século XI, refutou esse argumento. Usou o argumento da ilha pefeita, “tão excelente que melhor não pode ser concebida”. Portanto, essa ilha deve existir, porque seria menos excelente se não existisse. Mas isto é absurdo. É claro que tal ilha não existe. Não se pode concluir a existência de algo da idéia de que esse algo é perfeito. Santo Anselmo estava ciente do problema e contra-argumentou que o argumento ontológico funciona apenas para Deus, visto que a relação entre Deus e a grandeza ou perfeição é única.
Continuando a exposição sobre o argumento ontológico de Anselmo, Gilson nos diz que “uma coisa pode existir numa inteligência sem que essa inteligência saiba que a coisa existe: quando um pintor imagina a obra que fará, ele a tem em sua inteligência, mas não conhece a sua existência, pois ainda não a fez; quando executou seu quadro, ao contrário, tem sua obra em sua inteligência e conhece a sua existência, pois já a realizou. Portanto, pode-se convencer o próprio insensato de que, ao menos em seu espírito, há um ser tal que não se possa conceber outro maior, porque, se ele ouve essa fórmula, ele a compreende e porque tudo o que se compreende existe na inteligência” (Gilson, 2007, p. 297). Continuemos com o argumento ontológico de Anselmo pela visão de Gilson: “O que é tal que não se pode conceber nada maior não pode existir apenas na inteligência. De fato, existir na realidade é ser maior do que existir na inteligência apenas. Portanto, se o ser que é tal, que não se pode conceber nada maior existe apenas na inteligência, diz-se que aquilo que não se pode conceber nada maior é aquilo que se pode conceber algo maior, o que é contraditório. O ser tal que não se pode conceber outro maior existe, pois, indubitavelmente, tanto na Inteligência como na realidade.” (Gilson, 2007, p. 297).
Ainda em plena Idade Média o argumento ontológico de Anselmo foi contestado. Ainda em vida, segundo Gilson, Anselmo encontrou na pessoa do monge Gaunilo um penetrante contraditor. Gaunilo objetava que não se pode basear na existência do pensamento para daí inferir a existência fora do pensamento, ao que Anselmo respondeu que “a passagem da existência no pensamento à existência na realidade só é possível e necessária quando se trata do ser maior que se possa conceber e é próprio apenas de Deus que não se possa pensar que ele não existe”. (Gilson, 2007, p. 298).
Ainda que se recuse a prova como tal, reconhecer-se á, sem dúvida, diz-nos Gilson, que “Santo Anselmo viu justo ao sublinhar a força irresistível com a qual a noção de ser absoluto, isto é, tal que não se possa conceber outro maior, pede, de certa forma, a colocação da sua existência pelo pensamento que o concebe” (Gilson, 2007, 298).
Conta-nos Gilson que a doutrina de Anselmo foi retomada ao longo do séculos por vários pensadores, entre os quais se destacam São Boaventura, Descartes, Leibniz e Hegel, sendo que cada um retomou-a a sua maneira, mas Tomás de Aquino, Locke e Kant a rejeitaram, cada um também à sua maneira, entretanto, o que há de comum em todos aqueles que a admitem é a identificação da existência real com o ser inteligível concebido pelo pensamento. O que têm em comum todos os que condenam seu princípio é a recusa de colocar qualquer problema da existência à parte de um dado empiricamente existente, assinala Gilson (Gilson, 2007, p. 299).
É importante que se destaque como Santo Anselmo chegou ao seu argumento ontológico. Ele parte da idéia da existência das idéias gerais. Ele insiste na realidade dos gêneros e das espécies, a ponto de fazer do realismo uma condição necessária da ortodoxia teológica (Gilson, 2007, p. 302). Para ele, se sequer se compreende como vários homens podem [...] formar um só homem, compreender-se-á menos ainda como um só Deus pode consistir em três pessoas distintas” (Gilson, 2007, p. 302). Esta realidade atribuída às idéias gerais é, de resto, um dos elementos que orientaram o pensamento de santo Anselmo para a descoberta do argumento ontológico e que lhe permitiram argumentos diretamente sobre os graus de perfeição para se elevar a Deus (Gilson, 2007, p. 302). Ou seja, a idéia do ser mais perfeito que se possa conceber nos introduz de saída numa certa ordem de realidade.
Para concluir a exposição sobre o argumento ontológico de Anselmo de Cantuária, utilizo-me das palavras de Étienne Gilson, para quem toda coisa é verdadeira enquanto é o que deve ser segundo sua idéia em Deus. A verdade é a conformidade do que existe à regra que fixa o que deve ser, e como essa regra é sempre, afina de contas, a essência criadora, Santo Anselmo conclui que só há uma verdade de tudo o que é verdadeiro, ou seja, Deus (Gilson, 2007, p. 303).
As teses de Anselmo sondam profundamente os problemas que tocam. Sua teologia estava avançada em relação à teologia de caráter ainda patrístico que Abelardo iria propor (Gilson, 2007, p; 303). O que mais falta a essa doutrina, conclui Gilson, “é uma filosofia de natureza densa o bastante para equilibrar a atordoante virtuosidade dialética de seu autor. [...] Toda a obra de Santo Anselmo é um diálogo entre a lógica e a revelação cristã. Portanto, não causará espécie que ela tenha uma importância capital para a história da teologia; mas, se o interesse que apresenta para a história de filosofia é mais limitado, aqui ela ganha em profundidade o que perde por extensão. A prova da existência de Deus tirada apenas da sua idéia foi e continua a ser uma dessas experiências metafísicas de que se pode dizer que nascem eternas, porque atingem o termo final de um dos caminhos que o espírito humano pode seguir (Gilson, 2007, p. 303).

2. PARTE II: Crítica de Tomás de Aquino a Anselmo de Cantuária.
Alberto Magno era o aristotélico mais eminente entre os filósofos de sua época. É sob a orientação dele que Tomás de Aquino vai permanecer por muitos anos, até que, em 1256, obtém o grau de mestre e licença para ensinar.
Enquanto o pensamento de Santo Agostinho representa o desenvolvimento de uma filosofia cristã baseada em Platão e no neoplatonismo, São Tomás de Aquino resgata a filosofia de Aristóteles, mostrando ser possível desenvolver uma leitura do estagirita compatível com a fé cristã.
Sua principal contribuição à filosofia se encontra nas grandes sínteses das principais questões filosóficas e teológicas da época: a Suma contra os gentios e a Suma Teológica.
Ao contrário de Anselmo de Cantuária, para quem “É preciso crer para entender”, Tomás de Aquino está convencido de que é a razão que procura demonstrar racionalmente aquilo que a fé revela, sendo portanto um caminho para a fé.
As “cinco vias” consistem em cinco grandes linhas de argumentação por meio das quais se pode provar a existência de Deus. A importância de seus argumentos reside na suposição de se chegar ao entendimento de Deus, mesmo que de forma parcial e indireta, a partir da consideração do mundo natural, do universo, entendido como criação divina. Seria possível, desta forma, reconhecer através da razão, as marcas do Criador em sua Criação.
Cabe aqui enfatizar a influência do pensamento aristotélico na filosofia de São Tomás, refletida nas referências feitas pelo santo aos tratados de Aristóteles sobre Física (para a discussão sobre a natureza do movimento na primeira via); sobre Metafísica (para a discussão sobre causa eficiente na segunda via); e também sobre seu emprego de conceitos aristotélicos como os de necessidade, existência, finalidade ou causa final (para a discussão da quinta via, ou seja, o argumento teleológico). Tomás busca examinar cada questão em todos os seus diferentes ângulos, esgotando assim, todas as possibilidades lógicas possíveis.
A seguir, serão expostas as três questões que podem ser formuladas sobre a existência de Deus. Em seguida, serão expostas as objeções feitas por Tomás e logo depois suas respostas conclusivas:
1. A existência de Deus é uma verdade evidente?
2. A existência de Deus pode ser demonstrada?
3. Deus existe?
À primeira questão, Tomás de Aquino vai ponderar, cautelosamente, dizendo que a existência de Deus “parece” ser evidente. Se verdades evidentes são aquelas cujo conhecimento está em nós naturalmente, como é o caso dos primeiros princípios, e o que diz Damasceno (“O conhecimento da existência de Deus é inato a todos os homens”), então, a existência de Deus é evidente.
Denominamos evidentes as verdades que conhecemos, desde que possamos compreender o significado dos termos que as exprimem. É o que Aristóteles atribui aos primeiros princípios da demonstração. Ou seja, quando compreendemos o significado do todo e também o significado da parte, entendemos logo que o todo é maior que a parte. Aquino noz diz que, desde que tenhamos compreendido o significado da palavra “Deus”, saberemos de imediato que Deus existe. A palavra “Deus” designa uma coisa de tal ordem que não podemos conceber nada que lhe seja superior. Mas, se o que existe na realidade e no pensamento é maior do que o que existe apenas no pensamento, infere-se que o objeto designado pela palavra “Deus”, que existe no pensamento desde que se entenda esta palavra, também existe na realidade. Logo, a existência de Deus é evidente.
Se consideramos que a existência da verdade é evidente e se aquele que nega a existência da verdade concorda que a verdade não existe, e mais, se a verdade não existe, pode-se concluir que a não-existência da verdade é uma afirmação verdadeira. E se alguma coisa é verdadeira, então a verdade existe. Silogisticamente falando, se Deus é a própria verdade, logo a existência de Deus é evidente. “Deus compreende todas as coisas no mesmo instante. Seu conhecimento não é um hábito, nem discursivo ou argumentativo. Deus é a verdade – isto deve ser compreendido literalmente (Russel, 1968, p. 172).
Dispomos de duas maneiras de dizer que uma coisa é evidente. Primeiro, uma coisa pode ser evidente em si mesma e não por nós, ou pode ser evidente em si mesma e por nós. Por exemplo, uma afirmação é evidente quando o atributo está contido no sujeito (o homem é um animal). Neste caso, todos sabem que o atributo “animal” está contido no sujeito “homem”. Logo, a proposição é verdadeira em si mesma e por nós. Por outro lado, se alguns desconhecem o atributo e o sujeito de uma proposição, então ela será evidente em si mesma, mas não o será para aqueles que ignoram o que são o sujeito e o atributo. Aquino vale-se desse argumento para concluir que, quando se afirma que “Deus é”, considerada em si mesma a proposição é evidente, já que o atributo é idêntico ao sujeito. Ou seja, Deus é, de fato, o seu ser. Mas, como não sabemos o que Deus é, esta proposição não é evidente para nós, precisa ser demonstrada por aquilo que é menos conhecido na realidade.
No que concerne à primeira objeção, argumenta Aquino que, num determinado estado de consciência – vago, confuso – o conhecimento da existência de algo é inato entre nós, uma vez que Deus é a busca maior do homem, ou seja, a sua felicidade. E o homem deseja naturalmente ser feliz. E o que o homem deseja naturalmente, ele conhece naturalmente. Mas para Aquino isso não é conhecer a existência de Deus.
Com relação à segunda objeção, aquele que escuta a palavra “Deus” pode ignorar que ela designa algo do qual nada pode ser maior, mas mesmo que acreditemos que todos defendam a palavra “Deus” como se Deus tivesse uma forma corporal, não significaria que representariam esta coisa como algo real ou apenas uma representação mental.
À terceira objeção, Tomás de Aquino vai responder que a existência da verdade indeterminada é evidente por si mesma, mas que a existência da primeira verdade não é evidente em si mesma para nós.
Formuladas as questões sobre a existência de Deus, expostas as objeções e respondidas tais objeções, passemos às respostas de Tomás de Aquino sobre a existência de Deus a partir das “cinco vias”.
Na primeira via, Aquino usa o argumento do primeiro motor. Ou seja, tudo o que move deve seu movimento a algo que o move. Nada é movido e movente ao mesmo tempo. Todo motor é motor em ato e todo movido é movido por potência que transforma em ato. Mover é transformar potência em ato. O movido é a passagem de potência em ato e há um motor primeiro que não tem nem potência porque é ato puro, isto é, Deus;
Na segunda via, Aquino usa o argumento da primeira causa eficiente. É a via que é tomada das causas, é o que explica o efeito. Explicando melhor: quando digo que alguma coisa “é”, estou recorrendo a uma causa formal, que delimita a matéria; recorro também a uma causa material para dizer que substância a constitui; passo à causa final para encontrar a sua finalidade e por fim vou à causa eficiente para encontrar a causa exterior que explica o efeito daquela coisa.
O argumento do existente necessário ou a via da contingência, Tomás de Aquino mostra que coisas podem ser e não ser, ou seja, são contingentes, logo, deve existir algo necessário. Há um ente necessário de razão, ou seja, necessário do necessário: Deus.
A via do grau de perfeição ou argumento pelos graus do ser nos mostra que conhecemos a realidade em graus, entretanto só podemos dizer de mais ou de menos em relação ao que “é”. O que é configura os graus do ser.
Por último, o argumento do governador supremo das coisas ou Causa Final. Algumas coisas da realidade necessitam de uma espécie de conhecimento. Necessita de algo inteligente que o governe, como, por exemplo a flecha precisa de um arqueiro. Tudo busca uma finalidade. Podemos ver que na natureza tudo age para um fim. Não estamos à deriva.
3. Conclusão
Santo Anselmo, o pai da escolástica, está entre os teóricos que instituíram e criaram o lema de que a razão estaria a serviço da fé. Suas questões principais foram a precedência da fé sobre a razão, as espécies de verdades, as relações entre Deus e o mundo e as provas da existência de Deus. Seu argumento ontológico resume-se na proposição: “Deus é aquele do qual não se pode cogitar outro maior”.
Santo Tomás de Aquino fundou sua filosofia no realismo, isto é, tudo o que existe se dá na realidade, ou seja, o que nos dá o conhecimento é a própria realidade. O conhecimento está relacionado com o “ser” no sentido de “existência” e é a posteriori. É por meio da realidade, ou seja, é da própria estrutura do ser humano que o conhecimento para em direção ao supra-sensível que Santo Tomás de Aquino propõe o conhecimento de Deus. E o caminho até esse conhecimento passa pelas coisas sensíveis. Dessa forma, prova a existência de Deus pelas suas “cinco vias”.
Percebe-se em Santo Anselmo uma aceitação da verdade revelada de modo incondicional. Ele parece, apenas parece, agir mais à luz da fé do que da razão. E por ter fornecido elementos da ciência da fé para mais tarde seu contributo desenvolver-se melhor, é conhecido como o pai da escolástica.
Seu argumento foi refutado com a justificativa de ser uma transição não aceita da ordem ideal para a ordem real, ou seja, ele dá um salto da ordem lógica para o real e isso é ilógico, posto que na ordem lógica não há como dá saltos. E Tomás de Aquino vai fundamentar SUS argumentos obedecendo às mais rígidas normas do silogismo aristotélico, sem pular etapas.
Tomás de Aquino rejeita a prova ontológica de Anselmo e segue o caminho oposto. Parte do real para provar a existência de Deus. Com Tomás, o cristianismo recebe uma definição racional, coerente, clara. A lógica foi amplamente usada em seu raciocínio e em suas argumentações, cujo fundamento é o encontro da verdade.

4. Referência Bibliográfica
GILSON, Étienne. Anselmo de Cantuária. IN: A filosofia na Idade Média. 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007. – (Paidéia).

SANTO AGOSTINHO - Estudo Dirigido
Para chegar até Santo Agostinho, preliminarmente procurarei fazer breve resumo dos séculos que o antecederam, tomando como base sempre o estudo do filósofo americano Will Durant (História da Filosofia Ocidental, Livro Segundo). Ao capítulo IV da primeira parte do Livro Segundo (Os Padres da Igreja), tentarei fazer inserções sobre O Desenvolvimento Religioso dos Judeus, O Cristianismo Durante os Quatro Primeiros Séculos, e Três Doutrinas da Igreja. E por fim, entrarei no capítulo A Filosofia e a Teologia de Santo Agostinho.
1. INTRODUÇÃO – A Igreja colocou as crenças religiosas em relação mais estreita com as circunstâncias sociais e políticas do que a tinham tido antes ou depois do período medieval. A Igreja é uma instituição social construída sobre um credo em parte filosófico, em parte relacionado com a história sagrada. Conseguiu poder e riqueza por meio desse credo. Todos os homens desse período que contribuíram para a vida intelectual eram eclesiásticos. A aristocracia secular cria o sistema feudal, que refreia ligeiramente a predominante e turbulenta anarquia. A humildade cristã é pregada pelo clero, mas praticada somente pelas classes inferiores. A partir do século XI, a Igreja consegue emancipar-se da aristocracia feudal, e essa emancipação é uma das causas do ressurgimento da Europa, mergulhada na era do obscurantismo. A vida, durante esses séculos, era precária e cheia de agruras. Má como era na realidade, as superstições tenebrosas tornavam-na ainda pior. Pensava-se que a grande maioria, mesmo de cristãos, iria para o inferno. A todo momento, os homens sentiam-se tomados de espíritos maus e expostos às maquinações de bruxas e feiticeiros. A miséria geral aumentou a intensidade do sentimento religioso.
2. O DESENVOLVIMENTO RELIGIOSO DOS JUDEUS – Não só a Cristandade, mas também o Islã derivam seu monoteísmo de uma fonte judaica. Pode bem ser que o mundo de hoje deva a sua própria existência do monoteísmo, tanto no Oriente como no Ocidente, aos macabeus. Os cristãos procuravam praticar a humildade cristã; os judeus, em geral, não o faziam. Os cristãos aprenderam nos Evangelhos a pensar mal dos fariseus, no entanto Mateus era fariseu e ensina aquelas máximas éticas que consideramos como sendo as mais características do ensinamento de Cristo. Depois do primeiro século, o Cristianismo também se cristalizou, e as relações entre o judaísmo e o Cristianismo foram completamente hostis e exteriores. O Cristianismo estimulou poderosamente o anti-semitismo. Durante toda a Idade Média, os judeus não participaram da cultura dos países cristãos, tendo sido perseguidos com excessiva severidade para que pudessem contribuir para a civilização, além de fornecer capital para a construção de catedrais e outros empreendimentos semelhantes. Foi só entre os maometanos, nesse período, que os judeus foram tratados com humanidade, podendo dedicar-se à filosofia e à especulação esclarecida.
3. O CRISTIANISMO DURANTE OS QUATRO PRIMEIROS SÉCULOS – O Cristianismo, devido a São Paulo, conservou o que havia de atraente nas doutrinas dos judeus, sem os traços que os gentios achavam difícil assimilar. Foi através do maniqueísmo que Santo Agostinho chegou à fé católica. O maniqueísmo combinava elementos cristãos e zoroástricos, ensinando que o mal é um princípio positivo, incorporado na matéria, enquanto que o bem é um princípio positivo, incorporado no espírito. Condenava que se comesse carne e tudo o que dizia respeito ao sexo, mesmo no casamento. A síntese da filosofia grega e das escrituras hebraicas permaneceu mais ou menos acidental e fragmentária até o tempo de Orígens (185-254 A.D.). Como Plotino, Orígens foi aluno de Ammonio Sacas, considerado por muitos como o fundador do neoplatonismo. Orígens foi condenado por muitos por manter quatro heresias: a preexistência das almas, que a natureza humana de Cristo existiu antes da Encarnação, que na ressurreição nossos corpos serão transformados em corpos absolutamente etéreos e que todos os homens, e mesmo os demônios, serão, no fim, salvos. Em sua obra Contra Celso, o Cristianismo, diz Celso, vem dos judeus, que são bárbaros; e somente os gregos podem extrair sentido dos ensinamentos dos bárbaros. Por um lado, a razão pura, exercida corretamente, basta para estabelecer o essencial da fé cristã. Por outro lado, porém, as Escrituras provam não apenas essas partes essenciais em si, mas muito mais. O governo da Igreja desenvolveu-se lentamente durante os três primeiros séculos, e rapidamente depois da conversão de Constantino. O desenvolvimento do Cristianismo antes de Constantino, bem como os motivos de sua conversão, foram explicados, de maneira diversa, por vários autores. Gibbson lhes atribui cinco causas: (1) o inflexível e o intolerante zelo dos cristãos, que impedia que os gentios abraçassem a lei de Moisés; (2) a doutrina de uma vida futura; (3) os poderes miraculosos atribuídos à Igreja primitiva; (4) a moral pura e austera dos cristãos; (5) a união e disciplina da república cristã. Os cristãos, em sua maior parte, acreditavam que só eles iriam para o céu. O Taurobolium era dispendioso: um touro tinha de ser morto, fazendo-se com que o seu sangue se derramasse sobre o convertido. Os profetas hebreus, alguns deles, ensinaram a ressurreição do corpo, mas parece que foi dos gregos que os judeus aprenderam a acreditar na ressurreição do espírito. Os cristãos acreditavam firmemente que a virtude seria recompensada no céu e o pecado punido no inferno. Rostovtseff afirma com razão que uma grande parte do exército era constituída de cristãos, tendo sido isso o que mais influiu sobre o Cristianismo. Santo Ambrósio, São Jerônimo e Santo Agostinho viveram a maior parte de suas vidas durante esse período de triunfo católico.
4. TRÊS DOUTORES DA IGREJA – Quatro Homens são os chamados Doutores da Igreja ocidental: Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho e o Papa Gregório o Grande. Agostinho viveu até a irrupção dos vândalos na África, e morreu enquanto estes estavam assediando Hipona, da qual era bispo. Fixou a teologia da Igreja até a Reforma e, mais tarde, uma grande parte das doutrinas de Lutero e Calvino. Jerônimo é notável, principalmente, como o tradutor da Vulgata, que permanece até hoje como a versão católica oficial da Bíblia. A teologia cristã teve duas partes: uma concernente à Igreja, e outra à alma individual. Ninguém será salvo a menos que haja sido batizado, e isto faz da Igreja uma intermediária entre a alma e Deus. Agostinho tentou ler a Bíblia, mas achou que ela carecia de dignidade ciceroniana.
5. A FILOSOFIA E A TEOLOGIA DE SANTO AGOSTINHO – A melhor obra puramente filosófica dos escritos de Santo Agostinho é o livro décimo primeiro das Confissões. Este livro trata do problema: tendo a Criação ocorrido como afirma o primeiro capítulo do Gênese, e como Santo Agostinho mantém contra os maniqueus, devia ter ocorrido o mais cedo possível. O primeiro ponto que Agostinho vai tentar entender é como a Criação saiu do nada. O panteísmo afirma que Deus e o mundo não são distintos, e que tudo no mundo é parte de Deus, que permanece eternamente fora da corrente do tempo, o que leva Agostinho a uma teoria relativista do tempo sumamente admirável (“Que é, pois, o tempo?”. “Se ninguém me pergunta, eu sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não sei”). Há, diz ele, três tempos: “um presente das coisas passadas (memória), um presente das coisas presentes (vista), e um presente das coisas futuras (espera)”. A teoria de que o tempo é apenas um aspecto de nossos pensamentos é uma das formas mais extremadas do subjetivismo que aumentou pouco a pouco na antiguidade, a partir de Protágoras e Sócrates. Seu aspecto emocional é a obsessão do pecado, que veio mais tarde que os seus aspectos intelectuais. Agostinho revela ambas as espécies de subjetivismo. O subjetivismo leva-o a antecipar não só a teoria do tempo, de Kant, como o cogito de Descartes. Em seus Solilóquios, diz: “Tu, que queres saber, sabes quem és? Sei. Onde estás? Não sei. Sabes que tu pensas? Sei”. Isto contém não apenas o cogito de Descartes, mas sua resposta ao ambulo ergo sum de Gassendi. Como filósofo, portanto, Agostinho merece um alto lugar. A Cidade de Deus foi um livro que exerceu imensa influência durante toda a Idade Média, principalmente nas lutas entre a Igreja e os príncipes seculares. O livro começa com considerações surgidas por motivo do saque de Roma e destinadas a mostrar que coisas ainda piores ocorreram em tempos pré-cristãos. Os romanos jamais pouparam os templos nas cidades conquistadas. O saque de Roma foi menos severo do que muitos outros, e essa mitigação foi um resultado do Cristianismo. A parte mais difícil da obra consistirá na refutação dos filósofos, com os melhores dos quais os cristãos estão em grande parte de acordo. Tanto os platônicos como os maniqueus erram ao atribuir o pecado à natureza da carne. Embora os platônicos não sejam tão maus como os maniqueus. Os platônicos são os melhores na lógica e na ética, e os que mais se aproximam do Cristianismo. Deve-se admitir que a relação sexual no matrimônio não é pecado, contanto que a intenção seja a de gerar prole. Santo Agostinho passa a combater os novos Acadêmicos, que afirmam que todas as coisas são duvidosas. “A Igreja de Cristo detesta essas dúvidas, que considera como loucura, tendo um conhecimento sumamente certo das coisas que apreende”. Durante toda a Idade Média e o desenvolvimento gradual do poder papal, bem como durante todo o conflito entre o Papa e o Imperador, Santo Agostinho forneceu à Igreja ocidental a justificação teórica de sua política. Uma grande parte do que há de mais influente na teologia de Santo Agostinho se destina a combater a heresia pelagiana. E uma grande parte do que há de mais feroz na Igreja medieval se deve ao seu sombrio conceito de culpa universal.
6. A CONTROVÉRSIA DE AGOSTINHO E PELÁGIO – A discussão sobre o livre-arbítrio e predestinação já se estendia antes de Agostinho. Eram assuntos conflitantes no seio da Igreja. Em Agostinho o assunto foi definido quando ele sumarizou e sistematizou as opiniões já existentes, levando a Igreja a tomar uma posição oficial, ainda que temporariamente . A posição teológica de Pelágio pode ser denominada de “monergismo humano”, porque para ele o poder da vontade humana é decisivo e suficiente na experiência da salvação. Sua célebre frase expressa claramente essa mentalidade, quando afirma : “Se eu devo, eu posso”.
A controvérsia entre Agostinho e Pelágio, se resumia em dois pontos teológicos: a liberdade (capacidade) da vontade humana (livre-arbítrio), e na maneira como Deus opera sua graça. Quando ao livre-arbítrio, a discussão era se o ser humano é absolutamente capaz de exercer a sua liberdade, ou não. Agostinho ensinava e defendia a doutrina “do pecado original”, e os seus inevitáveis efeitos mortais sobre a vida de todos os descendentes de Adão. Pelágio, contudo, negava tal contaminação, e afirmava a inocência da alma, como também a absoluta capacidade de escolha tanto moral, quanto espiritual.
Agostinho afirmava que todo ser humano é escravo do seu pecado e que o seu livre-arbítrio possui uma fonte pecaminosa, morta espiritualmente. Para ele, o homem carece absolutamente da ação graciosa de Deus em todos os seus aspectos para ser salvo, sendo exposta essa posição na doutrina da predestinação. Pelágio, refutando Agostinho, afirmava que o homem possui tanto o poder volitivo (volição = ato pelo qual a vontade se determina a alguma coisa) para escolher ser salvo, como para desistir desta salvação. Defendia que o ser humano possui uma capacidade de decidir o seu futuro independente da graça de Deus.
O próprio Agostinho percebeu incoerências em seu sistema doutrinário registrado em sua obra O Livre Arbítrio . Decidiu escrever um outro livro que expressasse suas idéias de modo mais consistentes e amadurecidas, que ele intitulou Graça e Livre Arbítrio . Mesmo após essa revisão em sua teologia, Agostinho continuou contendo algumas inconsistências em seu sistema. Embora sustentasse a predestinação, em alguns de seus escritos ele não a expressava com coerência, pois esta doutrina estava comprometida com erros doutrinários acerca de seu tendencioso sacramentalismo .
As decisões dos concílios (Cartago, 418 d. C., Éfeso (431 d. C., Orange II (529 d. C.) não puseram fim à controvérsia. O Pelagianismo conseguiu sobreviver mesmo após a sua condenação oficial. O próprio Agostinho possuía incoerências em sua doutrina, dando lugar ao surgimento de outro sistema doutrinário, o Semipelagianismo, que procurava estabelecer um sincretismo entre as doutrinas de Agostinho e Pelágio. O objetivo era de acalmar os ânimos desta controvérsia. O Semipelagianismo tem sido a doutrina oficial da Igreja Católica Romana. Foi este sistema teológico que os Reformadores enfrentaram. E deste sistema Jacobus Arminius derivou a sua teologia que ficou conhecida como Arminianismo.
7. AGOSTINHO: O MESTRE DO OCIDENTE – “Com Agostinho chegamos ao ponto culminante da patrística e talvez de toda a filosofia Cristã” (Gilson-Bohner). Para Agostinho o natural humano é importante para a compreensão do seu pensamento. Histórica e sistematicamente considerada, a verdade é o ponto de partida do pensamento agostiniano. Existe a verdade? Como a atingimos? Qual é ela? “Quem duvidará que vive, lembra-se, entende, quer, pensa, conhece e julga? Pois, se duvida, vive...se duvida, sabe que não sabe com certeza; se duvida, sabe que não pode dar o seu assentamento temerariamente. E ainda que duvide de tudo o mais, disto não deve duvidar, porque se essas coisas não existissem, seria impossível a dúvida”. Ou, mais concisamente: “Se me engano, sei que existo, pois, se me engano é que existo”. E assim descobriu Agostinho um novo gênero de verdades: as verdades de consciência; pensando desse modo venceu o ceticismo no seu princípio mesmo, pois temos aqui pelo menos o que aquele, o ceticismo, combate em geral. É Agostinho, não somente um precursor do cogito ergo sum cartesiano, mas anuncia também a teoria de Hume sobre o valor da percepção sensível, e a distinção de Leibniz sobre verdades de fato e verdades de razão.
Foi Agostinho então levado a buscar outra fonte da verdade. Achou-a no espírito do homem. “Não procure fora! Volta-te para ti mesmo!”.
Podemos estabelecer como essencial em Agostinho, com a doutrina da iluminação divida, que ele quis professar um apriorismo teorético-epistemológico. Assim, ele permanece na direção da sua posição espiritual, em geral, platonizante. Mas nas suas expressões literárias, sempre conforme à sua condição de retórico ardoroso, se serve de imagens algo mais fortes, como dele dizia S. Boaventura.
Qual é para Agostinho a essência da verdade? Ele tem Aristóteles em vista quando, para citar a reprodução medieval do seu pensamento, diz: Verum definientes dicimus esse quod est, aut non esse quod non est. Agostinho conhece também esta verdade lógica, e a toma mesmo como ponto de partida imediato das suas reflexões. Mas essa verdade recua para um plano inferior, para tornar-se visível o seu fundamento da verdade – as idéias eternas existentes na mente divina. A verdade coincide com elas, as quais – rationes, ideae, species aeternae – constituem propriamente a essência da verdade. Mas então a verdade vem a assumir uma realidade ontológica: “a verdade é o que é” (verum est id quod est), onde o “o que é” já não significa a concordância do juízo com a realidade, mas com os exemplares primeiros na mente de Deus. Neles vê Agostinho, como Platão, o ser verdadeiro, o “ser em verdade”.
Agostinho prova a existência de Deus simplesmente porque o seu conceito pertence aos conceitos fundamentais do espírito, como o admitiam os estóicos e também São Paulo (Rom. I, 2). Considera a prova noológica da existência de Deus a mais importante. É a verdade absoluta. Através do imperfeito atingimos o perfeito; através do relativo, o absoluto; e através do humano, o transcendente. Mas exatamente por aí é que chegamos a Deus. Agostinho tem presente o Symposion de Platão, e assim temos nós já também o ponto de vista histórico-ideal, donde devemos partir para uma exata exposição da prova noológica da existência de Deus. Deus é considerado como o ser perfeito, sem o qual o imperfeito não pode ser pensado. Ele é a verdade, o bem e o fundamento exemplar de todas as verdades e valores, o suporte, na expressão platônica. Deus não é deduzido por via de um raciocínio causal, no sentido de ter ele, como causa primeira, estabelecido as verdades, não; é nas verdades mesmo que já nós o apreendemos, assim como mediante os bens particulares atingimos o bem absoluto, embora não em sua omnitude realitatis, certamente com um determinado ser e não outro.
Agostinho vê na vida o seu parentesco com o Logos, pois o seu ponto de partida é a alma viva e pessoal, o espírito vivo. “Tu eras mais íntimo a mim que a minha própria intimidade”. “Tarde te amei, ó beleza, ó velha e nova beleza, tarde te amei; e vê, estavas tu no meu íntimo e eu fora, a procurar por ti”.
Atributos de Deus – mesmo as nossas idéias sobre Deus só têm aplicação analógica (fora da lógica). “Devemos, na medida do possível, pensar Deus como bom, sem entrar na categoria da qualidade: grande sem a quantidade; criador, sem indigências; superior a todas as coisas, sem situação local; abrangendo-as todas, sem as cingir; onipresente, sem lugar; eterno, sem tempo; criador de tudo o mutável, sem sofrer ele próprio nenhuma mudança, sem sombra de passividade”.
As idéias no Espírito divino – Todo ser, fora de Deus, é somente cópia do exemplar primeiro, no seu espírito. Agostinho é partidário da doutrina das Idéias, mas, a exemplo de Filo, transpassou as Idéias para a mente divina. Elas existem em Deus.
A Criação – A criação é portanto uma realização das Idéias contidas na plenitude muito mais rica de Deus. A marcha do processo cósmico introduzido com a criação Agostinho a justifica com o auxílio de três fatores: a matéria, o tempo e as formas. A matéria é o substrato de todo ser criado. Cópias são sempre cópias, embora sejam também realidades, mas diminuídas. Contudo, a matéria, para Agostinho, parece ser “quase nada”. Vê-se claramente a influência do platonismo, mas com uma importante transformação, por obras dos filósofos cristãos, que querem exaltar a obra divina da criação.
O tempo - Onde não há nem aparências nem ordem, não há também nenhuma mudança e, portanto, nenhum tempo. Tempo e criatura são dois aspectos de uma mesma coisa. E se compreende seja a eternidade algo de totalmente diverso do tempo. A eternidade não admite qualquer mudança, ao passo que o tempo é todo ele mudança. A relação entre a eternidade e a criação do temporal é para nós um enigma. O tempo nos é algo de enigmático. Não podemos vivê-lo senão no momento presente. O fator mais importante no processo cósmico é a forma. Esta ocupa o ponto central, não somente da epistemologia, mas também da metafísica agostiniana.
Primado das Idéias – Certos seres, como o dia, o firmamento, a terra, o mar, o ar, o fogo e as almas humanas receberam a existência imediatamente com a sua forma definitiva, ao passo que outros, como os seres vivos e também o corpo do homem apareceram aos poucos, no decurso da evolução.
O que Agostinho quer acentuar no processo cósmico é o papel da forma e sua força. Ao mesmo tempo focaliza a sabedoria e a onipotência divina. No processo cósmico o espaço e o tempo não fazem senão acolher no seu seio e alimentar o que Deus criou com a palavra do seu espírito. Eles vêm a ser, como em Platão, apenas as nutrizes, o lugar do devir. Deus porém é que é o Pai donde procede o ser e a vida.
Agostinho é um homem de raros dotes psicológicos. Nas Confissões ele demonstra um profundo conhecimento do homem. Para Agostinho o homem como alma constitui uma unidade, como já ensinou a filosofia patrística. A unidade consiste em a alma possuir, usar e governar o corpo. “A alma é uma determinada substância racional, que existe para governar o corpo. O homem é propriamente a alma. O corpo não lhe é uma constituinte da mesma importância. O homem é uma alma racional, que usa de um corpo mortal e terreno. A alma está não somente numa parte do corpo, mas em todo ele, com uma intensidade vital. Fundamental porém para a posição própria da sua psicologia é o platonismo geral dos padres. A nota pessimista que este ainda manifesta em Orígenes – a alma está no corpo como numa prisão – Agostinho a rejeita, mas o homem como essencialmente alma mantém-se e, por Agostinho torna-se um patrimônio comum da posição cristã concernente ao homem. O pensamento fundamental de sua prova da imortalidade é o seguinte: sendo a verdade imutável e eterna, e estando o espírito humano inseparavelmente ligado com ela, deve também este ser eterno. A alma, imersa no tempo pelos seus atos, penetra, através do conteúdo deles, num mundo atemporal – o mundo a verdade. Agostinho vê que é pelo eu vivo que nós lembramos, pensamos, queremos e amamos e que isso supõe uma inseparável união com a verdade e os valores. E sendo na substância mesma do eu vivo que se radica essa união inseparável, a alma é necessariamente imortal.
Lei Eterna - “O conceito de lei eterna, infuso em nós, significa, em suma, aquela retidão em virtude da qual tudo se dispõe do melhor modo”. Agostinho dá especialmente e de preferência o nome de lei eterna à lei moral, tomando o todo pela parte e estabelecendo ao mesmo tempo o último e mais universal princípio da lei moral. Para ele, a lei eterna, como expressão ideal da ordem do universo, constitui o princípio da moralidade.
O primado da vontade - “A vontade está sempre presente, sim, os homens não são outra coisa mais que vontade”. Para Agostinho, o coração tem também as suas leis. As leis do bem estão indelevelmente gravadas na vontade humana.
A Cidade de Deus - Agostinho utilizou praticamente, para a vida concreta, as suas idéias de valor e da filosofia da felicidade, na sua filosofia social e da história, exposta na sua Cidade de Deus. É ele contrário ao arbítrio e ao capricho subjetivo, e constrói sua filosofia social e da história baseado na idéia da ordem. Homens e Estado significam para Agostinho vontades, mas submetidas a uma norma. Este ponto de vista Agostinho o estende ao conjunto da história do mundo. Sua concepção social se reduz a isto: cidade de Deus ou cidade do mundo. A Cidade de Deus consta de homens adaptados à eterna ordem de Deus. Agostinho mostra que as forças do bem estão em contínua oposição às do mal, pois o bem é imortal e a vitória será de Deus.
8. O LIVRE ARBÍTRIO – LIVRO I – O PECADO PROVÉM DO LIVRE-ARBÍTRIO
Apresentação
Patrística – estudo da doutrina, as origens dessa doutrina, suas dependências e empréstimos do meio cultural, filosófico e pela evolução do pensamento teológico dos pais da Igreja. Os “Pais da Igreja” (...) foram forjando, construindo e defendendo a fé, a liturgia, a disciplina, os costumes e os dogmas cristãos, decidindo, assim, os rumos da Igreja.
Introdução
Formação ideológica do livro – tem como tema o problema da liberdade humana e o da origem do mal moral. O mal visto no conjunto não é mais um malefício, mas sim uma contribuição ao bem comum e à beleza da ordem. Poderia ser dito o mesmo do mal moral, que se opõe diretamente à vontade de Deus.
Segundo os dados da fé, Deus todo-poderoso e Bem supremo criou todas as coisas por meio do seu Verbo. O pecado não pode lhe ser imputado. Diz Agostinho: “É preciso compreender aquilo em que cremos”.
Breve síntese das idéias fundamentais - Para descobrir a origem do pecado, é preciso saber qual a sua essência. Cometer o mal só é possível pela livre opção de nossa vontade. O livro II é o coração da obra: prova a existência de Deus.
O livre-arbítrio e o maniqueísmo – Breve síntese da teoria maniqueísta: duas divindades supremas – o Bem e o Mal / A luz e as Trevas. Duas almas. O Mal é metafísico e ontológico.
A solução do problema do mal na interpretação de Agostinho – Ele encontra em Plotino a chave para resolver a questão: o mal não é um ser, mas deficiência e privação do ser. Examina o mal em três níveis: a) metafísico-ontológico; b) moral; c) físico. Do ponto de vista metafísico-ontológico, não existe mal no Cosmos; pela perspectiva moral, o pecado depende da nossa má vontade. O mal deriva do fato de que não há um único bem, e sim muitos bens, consistindo precisamente o pecado na escolha incorreta entre esses bens. O fato de se ter recebido de Deus uma vontade livre é para nós um grande bem. O mal é o mau uso desse grande bem.
As “Retractationes” e a resposta aos pelagianos – Os maniqueus negam o livre-arbítrio da vontade e pretendem fazer recair em Deus a responsabilidade pelo mal e pelo pecado. Agostinho não fala com insistência sobre a graça como medicina e socorro do livre-arbítrio, porém insinua-a várias vezes. Repete que o homem é livre para fazer o bem e que não é forçado a cometer o mal. Sem o livre-arbítrio não haveria mérito nem demérito, glória nem vitupério, responsabilidade nem irresponsabilidade, virtude nem vício.
A vontade, a liberdade e a graça – “Duas condições são exigidas para fazer o bem: um dom de Deus que é a graça e o livre-arbítrio” (Etienne Gilson). Esse poder de usar bem o livre-arbítrio é precisamente a liberdade, mas o poder de não fazê-lo e a marca da liberdade.
Apreciação geral da obra – O que há de mais valioso na obra é a prova da existência de Deus. Outro ponto de particular valor é a doutrina sobre a Providência, um dos mais possantes faróis a iluminarem constantemente o pensamento de Agostinho. Não há escritor, em toda a Idade Média, que fale ou trate da questão do livre-arbítrio e do pecado que não tenha ido beber na fonte agostiniana.
O problema do mal (Livro I – O Pecado provém do Livre-Arbítrio, Cap. 1) – O mal não poderia ser cometido sem ter algum autor. Fazer o mal é renunciar à instrução, pois a verdadeira instrução só pode ser para o bem. E qual a causa de praticarmos o mal? Dia Agostinho: “se não fosse meu ardente desejo de encontrar a verdade, não teria podido emergir de lá nem aspirar à primeira das liberdades – a de poder buscar a verdade”.
Pontos fundamentais da fé – Conceber de Deus a opinião mais excelente possível é o começo mais autêntico da piedade.
Essência do Pecado/Submissão da razão às paixões – Quem quer que faça um mal o qual não quer que lhe façam, procede mal. Se for mal tudo o que os homens condenam, era crime crer em Cristo e confessar a própria fé. O mal provém da paixão interior. Em todas as espécies de ações más é a paixão que domina.
Objeção: e os homicídios cometidos sem paixão? – A concupiscência tende para o objeto. O medo foge. Aquele que mata um homem levado pelo medo, deseja, sem dúvida, viver sem medo.Todas as ações más unicamente são más por causa da paixão pela qual são praticadas, isto é, por desejo culpável.
Outra objeção: e os homicídios cometidos em autodefesa, admitidos pela lei civil? – Uma lei que não seja justa não é lei. Poder matar não significa dever matar. A lei permite ao povo delitos menores para impedir que se cometam outros piores (Se Agostinho tivesse vivido na época do holocausto que dizimou milhares de vidas humanas nas tragédias de Hiroshima e Nagasáki, teria ele mantido o pensamento acima?). A morte de agressor injusto é mal menor do que a de um homem que mata em legítima defesa. Que um homem seja violentado em seu corpo contra sua vontade é coisa bem mais horrível do que o fato de o autor de tamanha violência ser morto por aquela a quem intentava agredir. A própria lei que foi promulgada para a defesa do povo não merece acusação alguma de ser portadora de qualquer paixão. Uma boa lei pode ser dada por mau legislador. A lei não obriga ninguém a matar mas deixa a possibilidade de o fazer. Quanto à vida, alguém se poderá pergunta se ele é ou não tirada com a morte do corpo (para Agostinho, aqui, vida e alma são a mesma coisa. O ideal cristão prega que não se deve tirar a vida de ninguém. Vejo em Agostinho uma doutrina cristã bem mais voltada para uma ética mais justa e racional, do que o que tenta pregar o cristianismo moderno). O pudor não poderá ser arrebatado pela profanação involuntária do corpo. Não está em nosso poder conservar tudo o que aquele injusto agressor poderia nos arrebatar.
As paixões – desculpadas pela lei civil, condenadas pela lei divina – A divina Providência nada deixa de governar neste mundo. A lei escrita autoriza atoso que a Providência pune. Se a lei humana não faz tudo, não será por isso motivo de reprovação pelo que faz.
Solução: saber distinguir a lei eterna das leis temporais – Nada existe que seja tão árduo e difícil que não se torne, com a ajuda divina, bem simples e fácil. Duas leis parecem estar em contradição entre si. Uma delas confere ao povo o poder de eleger os seus magistrados. A outra recusa-lhe essa prerrogativa. Agostinho denomina de lei temporal à lei que a princípio é justa. Na lei temporal dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei eterna, esta sendo aquela em virtude da qual é justo que todas as coisas sejam perfeitamente ordenadas.
O homem – superior aos animais pela razão – Uma nação constitui-se de homens unidos entre si, sob uma única lei, a lei temporal. Ciência que se denomina pura e propriamente conhecimento, tendo sido adquirida pela razão e pela inteligência, não pode ser ela um mal.
O lugar do homem na escala da perfeição dos seres – Só quando a razão domina a todos os movimentos da alma, o homem deve se dizer perfeitamente ordenado.
O homem sábio é aquele que vive submisso à razão – Aquele que é dotado de razão não pode estar privado da mente. Sábio, para Agostinho, é aquele a quem a verdade manda assim ser chamado. Ou seja, aquele cuja vida está pacificada pela total submissão das paixões ao domínio da mente. O reino da mente pertence aos sábios.
Nada força a razão a submeter-se às paixões – No homem o senhorio da mente constitui a sabedoria, entretanto a mente pode não exercer de fato esse seu senhorio.
O Ser supremo não constrange a mente humana a ser escrava das paixões – O responsável pela submissão às paixões só pode ser o livre-arbítrio. Não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria vontade e o livre-arbítrio.
Uma hipótese do platonismo – Como a sabedoria reside na alma, Agostinho pergunta se acaso não terá esta vivido outra vida, antes de se unir a um corpo tal e, assim ter desfrutado antes da posse de alguma sabedoria. Aí me vem uma indagação que nunca me fiz antes: por que alguns seres humanos são mais bem dotados de inteligência do que outros?
Nossa boa vontade implica o exercício de quatro virtudes cardeais. A força, disposição da alma pela qual nós desprezamos todos os dissabores e a perda das coisas que não estão sob nosso poder. A temperança, disposição que reprime e terém o nosso apetite longe daquelas coisas que constituem uma vergonha o ser desejáveis. Virtude que reprime as paixões, oposto à boa vontade do que a concupiscência. E quem possui e ama a boa vontade não pode querer mal a ninguém, ou seja, não causa dano a ninguém. A justiça, virtude pela qual damos a cada um o que é seu.
Levar a vida feliz ou infeliz depende de nossa boa vontade. Todo aquele que quer viver conforme a retidão e honestidade, se quiser pôr esse bem, acima de todos os bens passageiros da vida, realiza conquista tão grande, com tanta facilidade que o querer e o possuir serão um só e mesmo ato. A lei eterna decretou que o merecimento está na vontade. A desgraça se segue necessariamente, mesmo contra o desejo da felicidade. Todos querem ser felizes, mas nem todos podem sê-lo. Todos querem viver com retidão, e é só com essa boa vontade que têm o direito à vida feliz.
Relação da boa vontade com a lei eterna e a temporal – Há duas espécies de homens: uns, amigos das coisas eternas; outros, amigos das coisas temporais. Há também duas leis: uma eterna, outra temporal. Da lei eterna deriva tudo o que é justo e tudo o que pode ser mudado com justiça. A lei eterna ordena desapegar-nos do amor das coisas temporais e voltar-nos purificados para as coisas eternas.
Conclusão: a definição da essência do pecado mostra que ele procede do livre-arbítrio. A vontade pode destronar a alma das alturas de onde domina e afastá-la do caminho reto. O mal moral tem sua origem no livre-arbítrio de nossa vontade.
LIVRO II – A PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS REVELA-O COMO FONTE DE TODO BOM. DEUS NÃO É O AUTOR DO MAL, MAS DO LIVRE-ARBÍTRIO, QUE É UM BEM.
Era necessário que Deus desse ao homem o livre-arbítrio. Primeira condição para a solução do problema: colocar-se no ponto de vista de Deus; segunda condição: não se limitar à fé, mas procurar o seu entendimento. Se é incerto ela (a vontade) nos ser dada, tampouco é certo que seja um bem ela nos ter sido dada. Não é igualmente certo que seja Deus o doador. A incerteza sobre a conveniência do dom torna incerta a origem, isto é, o fato de ser Aquele a quem não nos é permitido crer que conceda algo que não deveria ser concedido (Evódio). Se crer não fosse uma coisa e compreender outra, seria em vão que o profeta teria dito: “Se não o credes não entendereis” (idem, citando Is. 7,9, na LXX). Não se pode considerar como encontrado aquilo em que se acredita sem entender. Ninguém se torna capaz de encontrar a Deus se antes não crer no que há de compreender (Evódio).
Início da ascensão a Deus para chegarmos à prova de sua existência – O ser que entende possui também a existência e a vida. E o ser que possui essas três verdades – o ser, o viver e o entender - é melhor do que aquele não possui senão uma ou duas delas. Cada sentido tem certos objetos próprios sobre os quais nos informam, e que alguns dentre eles percebem objetos de modo comum. Seria pela razão que nós compreendemos a existência desse sentido interior. É a própria razão que exerce essa função vital que chamamos de sentido interior. Somente a razão pode definir essas coisas e pode agir sobre objetos submetidos a seu exame. Os sentidos exteriores não se percebem a si mesmos. Somente o sentido interior percebe-se a si mesmo, como sente as impressões que recebe dos cinco sentidos externos. Os sentidos corporais percebem os objetos corporais. Esses mesmos sentidos não podem ter a sensação de si mesmos, entretanto, o sentido interior percebe não só os objetos corporais por intermédio dos exteriores, mas percebe até mesmo esses sentidos, com dito antes. Por fim, a razão conhece tudo isso e conhece-se a si mesma. Portanto, todos esses conhecimentos tornam-se objeto de ciência. É o sentido interior o juiz e guia dos sentidos exteriores. Ou seja, a razão, que transcende a tudo mais no homem. Nós possuímos um corpo e também uma alma que anima o corpo e é a causa de seu desenvolvimento. E acima da razão, só Deus.

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