terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Filosofia Antiga



IMAGENS DO FLUXO HERACLÍTICO NA LITERATURA

Rinaldo de França Lima

“Eu vejo o futuro repetir o passado.
Eu vejo um museu de grandes novidades.
O tempo não pára”.
(Cazuza )


Resumo: A partir do fragmento “Não se pode pisar duas vezes nos mesmos rios, pois as águas novas estão sempre fluindo sobre ti”, discorrer apresentação que contemple, de forma abrangente, o pensamento de Heráclito de Éfeso, no que se refere à sua doutrina de que tudo se acha num estado fluente. A apresentação deverá ser encerrada com ilustrações extraídas da literatura, seja portuguesa, brasileira ou estrangeira. Os textos podem ser em prosa ou verso, desde que correlacionados ao assunto enfocado.

Antes de nos aprofundarmos mais amiúde sobre o gênio de Heráclito, lembremos que entre Pitágoras e Heráclito houve um outro filósofo de menor importância: Xenófanes. Jônio, Xenófanes viveu a maior parte de sua vida no sul da Itália. Acreditava que todas as coisas são feitas de terra e água. Para ele, “Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que é vergonhoso e infortunado entre os mortais: roubos, adultérios e falsidades... Os mortais julgam que os deuses são gerados como eles próprios, usam roupas e têm voz e formas como as deles... Se os bois, cavalos e leões tivessem mãos, e produzissem obras de arte como os homens, os cavalos pintariam os seus deuses com formas de cavalo, os bois com formas de boi, formando os seus corpos à imagem dos da sua própria espécie. Os etíopes fazem os seus deuses negros e de nariz chato; os deuses dos trácios têm olhos azuis e cabelos ruivos” (RUSSEL, 1967, p, 17). Xenófanes zombava da doutrina pitagórica da transmigração: “Afirmam que, certa vez, ele (Pitágoras) estava passando por um lugar onde alguém maltratava um cão. Ele teria tentado interromper a cena dizendo: “Pára, não lhe batas! É a alma de um amigo! Reconheci-o logo que lhe ouvi a voz”. Xenófanes, como pensador independente não é de primeira plana”. (RUSSEL, idem, p. 48).
O primeiro a inventar uma teoria que ainda exerce influência foi Heráclito, que floresceu cerca do ano 500 a.C. Era cidadão aristocrata de Éfeso. Sua doutrina repousava na máxima: Tudo se acha num estado fluente. Considerava o fogo como substância fundamental. Segundo Russel, “não parece ter sido uma criatura de caráter amável (...) Era desdenhoso, o oposto de um democrata”. Dissera certa feita que “fariam bem os efésios se se enforcassem, deixando a cidade para os rapazes imberbes”. Acreditava que “A guerra é o pai de tudo e o rei de todas as coisas; fez de certas criaturas deuses e de outros homens, umas, livres e, outras, escravas”. Heráclito aprecia o poder obtido mediante autodomínio, e despreza as paixões que distraem o homem de suas ambições centrais (RUSSEL, idem, p. 49).
Tinha outra doutrina, à qual se entregava mais do que à do fluxo perpétuo: era a teoria da mistura das coisas opostas. Dizia: “é o oposto que é bom para nós”. Russel cita: “Esta doutrina contém o gérmen da filosofia de Hegel, que procede mediante uma síntese de contrários. A metafísica de Heráclito, como a de Anaximandro, é dominada por uma concepção de justiça cósmica, que impede que a luta de opostos termine com a vitória completa de uma das partes”.
A doutrina de que tudo se acha num estado fluente é a mais famosa das opiniões de Heráclito e a que seus discípulos mais ressaltam, como se vê no Teeteto, de Platão. “Não se pode pisar duas vezes nos mesmos rios, pois as águas novas estão sempre fluindo sobre ti”. O que Heráclito quer dizer é que precisamos ver como a realidade se altera constantemente, como a água de um rio que se altera, como um vegetal qualquer que cresce e se desenvolve, e até o próprio homem, que cresce, e se desenvolve, se transforma, ou seja, sofre alterações a cada instante. Contudo, à medida que nos tornamos diferentes, mantemos a nossa identidade; embora sejamos diferentes, continuamos sempre sendo iguais. A cada instante um ente se altera, mais permanece o mesmo, porém esta alteração não é uma alteração onde surge um ente inteiramente novo, é o ente anterior modificado, é um novo ente, que possui como essência o ente anterior; exemplificando, um ser humano ao nascer não se tornará diferente quando envelhecer, será o mesmo ser humano, mas modificado, ou seja, velho. O que estamos tentando dizer é que toda identidade possui diferenças, por exemplo: jovem e velho, pequeno e grande, verde e maduro; são opostos que se completam em uma unidade, no uno, na identidade. Afirma-se então que cada diferença encontra a sua identidade de duas maneiras: 1ª – Em sua posição e afirmação do que ele é. 2ª – Pela diferença, pelo o que ele não é, ou seja, o seu oposto;
Neste ponto, escolhemos alguns excertos, extraídos de autores como Carl Rogers (Abordagem Centrada na Pessoa – ACP), Clarice Lispector (pequeno texto obtido a partir de sua obra Água Viva) e por último a letra da canção brasileira Como uma onda, de autoria do compositor e jornalista Nelson Mota, sucesso permanente na voz do cantor Lulu Santos.
Comecemos por Carl Rogers. Rogers fala de uma abertura à experiência, ao novo, ao imprevisível, ou no contexto do qual estamos falando, uma tentativa de criar o próximo acorde, sem saber muito bem os acordes seguintes, senão no momento em que estão acontecendo; portanto, quando se descobre o acorde, ele já é passado, pois quando se dá o instante-já, este “é” o instante-já; nós sempre chegamos atrasados com relação aos nossos sentimentos”. Para Rogers, “cada momento se daria como no fluxo heraclítico, como na velha metáfora em que se afirma que não se toma banho duas vezes no mesmo rio. Assim, se dão os instantes, pois estes, para este viver existencial, são sempre novos, sempre encarados e experimentados da maneira como se apresentam ao organismo, experimentados no aqui-e-agora (instante-já)”. (ROGERS, 1978, p.274).
Em Clarice Lispector, a personagem vivida em Água Viva passa por muitos momentos que a autora chama, também, de instantes-já, nos quais o momento é vivenciado no próprio instante em que acontece. O vivido é desdobrado no próprio momento em que acontece. Três momentos da obra de Clarice merecem destaque nesta apresentação. O primeiro: “Sim, esta é a vida vista pela vida. Mas de repente esqueço o como captar o que acontece, não sei como captar o que existe, senão vivendo aqui cada coisa que surgir e não importa o que: estou quase livre de meus erros. Deixo o cavalo livre correr fogoso. Eu, que troto nervosa e só a realidade delimita”. (LISPECTOR, 1973, p. 18). O segundo momento que destaco, diz o seguinte: “Meu tema é o instante! Meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes quando os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos, só me comprometo com a vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para” (LISPECTOR, idem, p. 10). Para encerrar Clarice, o fragmento mais belo: “Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente o chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está agora sendo transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero ser seu fluxo” (LISPECTOR, idem, p.15).
Em ambos, Rogers e Clarice, percebemos que usam a mesma ferramenta, a metáfora. Clarice, através da arte e Rogers através da Psicologia, mas ambos a partir da vida.
Por fim, uma curta canção brasileira que mostra de forma poeticamente clara todo o fluxo do pensamento heraclítico. Grande sucesso na voz de Lulu Santos, a composição do Nelson Mota assim nos brinda:

“Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa
Tudo sempre passará
A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito
Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente viu a um segundo
Tudo muda o tempo todo
No mundo
Não adianta fugir
Nem mentir pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro sempre
Como uma onda no mar “.

Em resumo, para Heráclito tudo está em completo fluxo, isto é, num constante vir-a-ser, em movimento contínuo, o que nos leva a um questionamento: até que ponto a identidade humana é preservada? Heráclito nos diz: “Em nós, manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice. Pois a mudança de um dá o outro e reciprocamente”. E para concluir este trabalho, cito Wellington Lima Amorim, graduado em Filosofia pela UFRJ: “O devir é que faz com que os opostos sejam subsumidos[1] numa mesma unidade, é a mudança que permitirá a dar limites aos opostos, para formar a unidade, logo o devir é a essência, ou seja, o princípio, o que permanece. (...) Hegel é influenciado pelo pensamento de Heráclito como ele próprio afirma em sua frase:” Não existe frase de Heráclito que eu não tenha usado em minha Lógica”.


BIBLIOGRAFIA

RUSSEL, Bertrand. Obras Filosóficas, in Heráclito. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1967, pp. 45-55.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. 3 ed. Curitiba. Editora Positivo, 2004.

VIEIRA, Emanuel Meireles. Fotografias de Perfumes: Uma Compreensão Clariceana de Conceitos de Abordagem Centrada na Pessoa de Carl Rogers. http://rogeriana.com/meireles/perfumes.htm.%20Acesso%20em%2018/12/2007.

AMORIM, Wellington Lima. A influência de Parmênides e Heráclito na Lógica Hegeliana. http://www.dialetica-brasil.org/. Acesso em 15/12/07.
[1] Subsumir: do lat. Sumere, “tomar, aceitar”. Em Filosofia, conceber um indivíduo como compreendido numa espécie (AURÉLIO).

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